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RÁDIO DIÁRIO 5m de leitura

Coragem, meu bem, coragem

ATUALIZAÇÃO
26 de outubro de 2020

Adriano Garib
AUTOR

Sempre acreditei que se somos pouco capazes de nos observar, devemos ao menos tentar observar o mundo a nossa volta. Isso já ajuda bastante. Observar-se e observar é o plano ideal. Mas poucos conseguem equilibrar essa delicada equação. Ou estamos muito para fora ou por demais para dentro. Ou nem para dentro e tampouco para fora, o que em geral acarreta uma montanha de problemas. Mergulhar em si mesmo é uma aventura extraordinária. E incomunicável, pois cada qual, ao fazê-lo, desmistifica medos e potencializa caminhos muito particulares.

O grande poeta norte-americano Walt Whitman dizia que somos frações completas do universo e que, portanto, há em cada um de nós uma inteireza vertiginosa: caótica, porém plena de sentidos e possibilidades. E que deveríamos aprender a lidar com nossos medos, pois entendê-los parece difícil, dado o seu caráter puramente irracional. Pela mesma razão, “domar” ou “dominar” nossos temores é algo desejável, mas raramente verificável. Ademais, o medo é fundamental. Sem ele, pouco nos mobilizaríamos para achar coragem. Na sala de casa há um belo quadro do artista londrinense Claudio Francisco da Costa, onde vemos um homem de costas observando o mar e, abaixo, a inscrição: “Coragem, meu bem, coragem”.  

Dito isto, devo tentar dividir com o leitor uma honesta constatação de dentro e uma cristalina percepção de fora. 

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Começo com a de dentro. Tenho sentido arrepios de paúra frente ao que considero meu pecado capital: a preguiça de desbravar novos territórios íntimos, relacionados sobretudo a outros tipos de trabalho. Passamos a vida toda fazendo em geral uma coisa só. Quando somos confrontados com dificuldades que nos impelem a outras atividades (uma pandemia, por exemplo), tendemos a rejeitá-las como se fossem odiosas ou como se mudar de área de atuação nos humilhasse e nos rebaixasse. Claro que isso mexe a fundo com nosso orgulho e vaidade, sentimentos tremendamente difíceis de serem administrados. Em muitas religiões e práticas meditativas, o binômio orgulho-vaidade requer um milhão de preces e muitas horas de quietude para ser não exatamente “superado”, - já que não parece possível livrar-se disso - mas minimamente aceito e só então “manobrável”. 

Já a percepção de fora, tão confusa quanto a própria “realidade”, é a de que vivemos tempos de absoluta exceção, uma jornada sem precedentes que a todos afeta, em maior ou bem maior grau. Testemunhamos dia a dia fatos e eventos como a decadência da democracia e do capitalismo global, a ascensão de autoritarismos e fundamentalismos, o materialismo, o individualismo, o crescimento de desigualdades sociais e econômicas, uma terra devastada no plano ecológico, violências e intolerâncias de todo tipo, ameaças as liberdades e a direitos fundamentais, uma epidemia de proporções mundiais, migrações em massa, terraplanismo e fake-news, descrédito da ciência e da academia, a supervalorização do mundo virtual em detrimento do real etc. A lista é interminável e aponta para uma iminente derrocada da humanidade. 

Se frente a tal cenário não formos capazes de manter o mais renitente engajamento humano (demasiado humano), certamente capitularemos. Minha mais profunda esperança, no entanto, exige, ao menos de mim mesmo, a leveza e a lucidez dos que encaram o mar com alguma coragem. 

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