Noite chuvosa de segunda-feira. Veste uma jeans e um par de tênis e, guarda-chuva em mãos, desce na confluência entre Ipanema e Copacabana a fim de apanhar uma pizza brotinho. Na ida, topa com dois cidadãos encostados na parede de uma loja fechada, por cima da qual uma marquise os protege do chuvisco. Nota que um deles grita ao rapaz que põe fora o lixo de uma padaria: “Aê, amigo! Tem alguma sobra aí?”

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. | Foto: Adriano Garib/Acervo pessoal

Na pizzaria, decide levar duas; as pizzas são minúsculas e sua fome nem tanto. Na volta ao hotel, o mesmo cidadão que procurava sobras de comida lhe diz: “Aê, amigo! Arruma uma dessa pra gente.” Ao que responde: “Pô, foi mal, tem uma família esperando por isso.” Os cidadãos agradecem e ele segue seu caminho.

Ao chegar no hotel, sente a ponta da culpa cutucando a consciência. Família nenhuma. Estava ali sozinho, disposto a devorar as duas brotinhos sem mais delongas. No fim come só uma; guarda a outra pros cidadãos da marquise. Nem bem arrota a pizza, já está na rua de novo, dessa vez de pijama, chinelos e sem guarda-chuva. Procura os cidadãos, nada. Frustrado, quase bravo, volta apressado ao hotel, pois a chuva aperta. Ao passar pelo lixo da padaria, nota algumas caixas reviradas, quiçá pelos cidadãos que ali já se viraram com alguma sobra. Chega a quase deixar a pizza no lixo, mas desiste a tempo; alguém há de precisar dela. Procura alguém, mas a chuva, agora forte, espantou geral. Nisso, divisa outro cidadão, com máscara de covid e nas mãos uns papéis, protegidos por uma sacola plástica.

Boa noite, o senhor viu os dois que estavam por aqui atrás de comida?

Não. Essa pizza era pra eles?

O senhor quer?

Ofereço a ele a caixa quadrada, ainda morna, e ele propõe: “Posso desenhar o senhor?”, e me mostra seus retratos feitos a lápis. Impressionado com seu traço, consinto. Permaneço parado, debaixo de uma estreita marquise com parca iluminação, as gotas de chuva estalando vez que outra nos meus pés de chinelo. Enquanto me desenha, conta um pedaço de sua vida. Que já foi um artista bem sucedido, mas que sua companheira o abandonou de repente, sem razão aparente e sem deixar bilhete. Desiludido, caiu em forte depressão e começou a perder clientes e trabalhos. Que hoje desenha turistas nas ruas, mas que quase ninguém mais se interessa por retratos falados. Que apesar disso segue fazendo seu trabalho e que cobra 5 reais por desenho.

Ele me estende o papel úmido. Nele vejo minha cara desolada, como quando me olho no espelho com um tanto mais de atenção. Fico um tempo a examinar o retrato, admirado com a destreza do artista. Quando saio do meu breve estupor, olho a frente, na intenção de saber seu nome, e o vejo do outro lado da rua, debaixo de uma chuva já torrencial, procurando onde se proteger. Aceno para ele; ele acena de volta e some numa esquina escura.

Na volta ao hotel, a chuvarada me dá um banho. Ao entrar no apartamento, retiro o retrato do bolso do pijama, onde tentei protegê-lo, mas tudo o que vejo é um borrão. Foi tanta água que até o papel se desfez. A única prova desse encontro notável foi perdida. Com essa crônica, espero não me esquecer disso.