Morei no Catete de 2002 a 2005. Na ocasião, o centro velho do Rio de Janeiro, embora há muito decadente, vibrava por todos os lados. Do Largo do Machado ao Colégio Zaccaria, a Rua do Catete, com sua frenética agitação, abrigava mercados, camelôs, comércios, restaurantes e trabalhadores em trânsito, gente assalariada que vivia em relativa dignidade em torno do belo parque do Museu da República.

Quase vinte anos depois, hospedado num hotel ao lado do Palácio do Catete, reencontro o mesmo cenário, bem mais populoso e com sintomáticas diferenças. Os pequenos comércios deram lugar aos supermercados; entre os camelôs e restaurantes, poucos ainda resistem; e o que mais se vê são grandes pilhas de lixo revirado nas calçadas. A um observador pouco atento bem pode parecer um problema sanitário, cuja única responsabilidade recairia sobre a limpeza pública. Mas não é o caso, haja vista o volume de caminhões da Comlurb operando na área.

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. | Foto: iStock

Por que, então, essa quantidade assustadora de detritos revirados entre o fechamento do comércio e a passagem da coleta do lixo? Da última vez que me pus a observar, vi homens, mulheres e crianças se enfiando nos fundos de grandes sacos pretos, a cata de alguma coisa para comer.

Como eu, muitos ficaram estarrecidos com uma postagem que viralizou recentemente nas redes sociais. Sozinho entre prédios altos, na Asa Norte, em Brasília, um homem se identifica aos gritos e implora por ajuda: “Alguém tem pão? Alguém tem comida? É fome! Por favor, é fome!” Nas palavras do jornalista Carlos Alberto Junior, autor da publicação: “Essa cena tem se repetido toda semana aqui na quadra”. Em reposta ao post, um internauta escreveu: “Brasília mudou. Não sei se atraiu pessoas com fome ou se as pessoas que já estavam aqui estão enfrentando mais problemas.”

É isso: Brasília mudou, o Catete mudou, o Brasil mudou… para pior. E há quem insista em colocar essa tragédia exclusivamente na conta do efeito pandemia. A pandemia nos empobreceu, não resta dúvidas. Mas, a meu juízo, a absurda irresponsabilidade do atual governo vem antes de tudo.

A manobra da famigerada PEC dos Precatórios - aprovada em 1º turno pela Câmara dos Deputados às custas de uma grave infração do regimento interno da casa (para aprovar a emenda, o presidente Arthur Lira permitiu que deputados ausentes na sessão votassem a matéria!) - vai fazer sobrar 83 bilhões de reais no orçamento da União para o próximo ano. Desse montante, 30 bilhões serão reservados para bancar o “Auxílio Brasil” - note bem - somente até dezembro de 2022. Os outros 53 bilhões? Caem no colo do governo para manejar o fundo eleitoral e as emendas parlamentares em ano de eleição.

Resumo da calamidade: se aprovada em 2º turno pelos deputados e passar pelo Senado Federal, o rombo no teto de gastos da União vai gerar uma dívida sem limites, instabilidade fiscal, aumento na taxa de juros e, como consequência, alta do dólar, inflação e desemprego. E aí sim valerá o bordão: “Que Deus tenha misericórdia dessa nação.”

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A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.