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Rádio Diário 5m de leitura

A mais cálida companhia

Por Adriano Garib

ATUALIZAÇÃO
06 de setembro de 2021

Adriano Garib
AUTOR

Literatura, doce refúgio. Algo que teimamos em acender quando as sombras se acercam. Para mim, nada há de tão terapêutico quanto vasculhar a cabeça à cata de certa organização através da palavra. Isso nada resolve, mas aplaca umas dores e, mais que tudo, alivia a solidão.  Nossas ficções nos fazem a mais cálida companhia. Quem insiste em escrever bem sabe.

 

James Joyce teria escrito “Finnegans Wake” em decorrência de um surto psicótico. Se é fato ou não, jamais saberemos. Difícil, senão impossível, urdir obra tão vasta e complexa sob os sintomas de uma psicose. Não desacredito, apenas duvido.

Camões, dizem, naufragou em alto-mar na companhia de sua amada e de uma mala com seus escritos; preferiu salvar a mala e deixar a amada ao sabor da sorte; não há como julgá-lo, só ele sabia o que tinha na mala.

Kafka ameaçava atear fogo em suas “garatujas”, mas - objeta Borges - sequer foi capaz de acender o fósforo. Flaubert, perfeccionista obsessivo, esteta compulsivo, levava anos para terminar um romance. Proust passou a vida a limpo em 7 extraordinários volumes.

Dostoiévski não parava de escrever nem mesmo no leito de morte de sua esposa. Oscar Wilde - detido por sodomia numa Inglaterra vitoriana, protestante e moralista - foi fundo em “De Profundis” para suportar as misérias da prisão.

O chileno Roberto Bolaño, ao pressentir a própria morte, quis deixar uma série de 5 longos romances como espólio à sua família, segundo ele, para garantir a sobrevivência dos seus. E todo esse esforço em nome de quê? Eis a tola pergunta. Macieiras dão maçãs, cães ladram, gatos miam… Escritores escrevem. 

Já para os leitores, a onda é outra. Quem recebe um livro e não o lê é como quem recebe uma carta e a ignora. Pergunto-me se alguém já recebeu uma carta e não a abriu. Ou abriu a carta, deu uma espiada e a deixou de lado, sem lê-la até o fim. Sim, é de se supor que isso já tenha ocorrido. E nesse caso, o destinatário há de jogar a carta no lixo, por uma razão ou outra.

O que é de fato curioso, relativamente aos livros, é a pessoa largá-lo numa instante, na intenção de vir a lê-lo um dia. Não conheci ainda quem tenha lido um livro tempos depois de tê-lo recebido. Meu caso é clássico: se não o leio imediatamente, sequer o folheio. Fico então a imaginar alguém que tenha lido um livro anos após tê-lo recebido e tenha sido surpreendido. Esse hipotético leitor talvez não suspeite que a literatura é um tônico poderoso não apenas para quem escreve, mas especialmente para quem lê. 

Uma amiga argentina mostrou-se sagaz leitora dos meus escritos. Mal domina o português e, ainda assim, fruiu de admirável leitura, com apaixonado interesse. Fez considerações sensíveis ao que leu, todas pertinentes. E, mais uma vez, me assombra a pergunta: por que aqui é tão raro leitores assim? Poucos leem? Literatura não é o nosso forte? É lastimável nossa educação? Ninguém se importa? O céu de hoje anda abarrotado de dados? Nenhuma resposta me consola, pois nenhuma justifica o silêncio do leitor. 

Sigo escrevendo, apesar disso. Convivo bem com tantas indiferenças, uma a mais uma a menos…

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