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A DOBRA - por Silvio Demétrio 5m de leitura

Nem pátria nem patrão

Livro do filósofo italiano Maurízio Lazzarato resgata sentido libertário da história da Ucrânia

ATUALIZAÇÃO
18 de agosto de 2023

Silvio Demétrio/ Especial para a FOLHA
AUTOR

Imagem ilustrativa da imagem Nem pátria  nem patrão

Sou descendente de ucranianos. Tanto por parte da família da minha mãe (Trush / Berehulka) quanto pela família do meu pai (Demétrio, originalmente algo como Dmitriuv numa transliteração livre). Uma história sofrida de fuga da fome e de pesadelos históricos. Minha avó materna, que a gente chamava de Baba, costumava contar muitas histórias sobre o passado da família. Dona Tecla morou um bom tempo em nossa casa em Apucarana e ela tinha o hábito de ler religiosamente depois do almoço. Lia qualquer coisa – revistas, bulas de remédio (ela tinha fissura por isso) e principalmente romances. Foi ela que me deu o primeiro livro de verdade para ler. "Demian" do Hermann Hesse. 

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É algo que eu sempre lembro quando vejo o noticiário sobre essa guerra estúpida tal como todas as outras guerras estúpidas. A placidez da figura de minha avó falando sobre coisas que hoje são objeto de uma manipulação e embustes históricos odientos. Por exemplo, a maneira como é tratado um episódio como o Holodomor é sintoma dessa infelicidade política que vivemos. Fala-se numa polarização. Eu vejo é excesso. Tudo é hiperbólico de uma maneira extremamente regressiva. Vivemos tempos toscos. Ou se usa o Holodomor para avivar a brasa do pânico moral da extrema direita e negar a importância de um evento como a revolução russa, ou então se cai num revisionismo negacionista tão tosco quanto o lado de lá. A fome de 32-33 aconteceu de fato e foi usada estrategicamente dentro das políticas de expurgos do stalinismo. O confisco da produção de grãos aconteceu de fato. A lei que proibia cidadãos guardarem ou procurarem comida foi executada e, obviamente, muita gente morreu de inanição como se sabe. 

A história da Ucrânia e sua relação com a Rússia é profundamente complexa para ser reduzida à epistemologia de quinta série das tretas de whatsapp no grupo da família. Sei que fujo um pouco do perfil da minha coluna aqui, mas explico. É que recentemente me chegou em mãos o livro novo do professor Maurízio Lazzarato, “O Que a Guerra da Ucrânia Tem a Nos Ensinar”, lançado pela sempre incrível editora N-1 Edições. Lazzarato é cirurgicamente preciso. De acordo com o filósofo italiano que mora em Paris, o que de principal podemos tirar do conflito é que existe a necessidade urgente de se voltar a pensar a guerra e o conflito como algo inerente à ordem estabelecida pelo capital globalizado. Segundo ele no último meio século aconteceu uma pacificação artificial que despotencializou o pensamento crítico. A ideia fundamental é um retorno à discussão do conflito de classes como horizonte maior que engloba e acirra todas as outras formas de opressão que lhe são interiores como a dominação masculina, o sectarismo, o racismo, o sexismo e toda forma excludente que fabrica a dinâmica de opressão das minorias. 

De acordo com Lazzarato a guerra entre Putin e a Ucrânia expõe essa realidade que o discurso sobre a globalização e seus desdobramentos colocaram em movimento. A academia “ficou desarmada” perante a guerra. Algo que visivelmente pode ser constatado em algumas falas de setores da esquerda brasileira que equivocadamente vê em Putin um herdeiro do legado da esquerda soviética. 

A capa do livro é também de uma precisão aguda. Traz uma reprodução da imagem do anarquista ucraniano Nestor Makhno. Figura fundamental da revolução e que lembra as suas contradições. Makhno foi usado pelos bolcheviques para derrotar o exército branco dos czaristas e depois foi descartado. Daí para os ucranianos a história da revolução ser muitas vezes vista como uma variação do imperialismo russo. Isso não significa que a Ucrânia seja a pátria da extrema direita como figuras caricatas como Sarah Winter gostariam que fosse. Muito pelo contrário. Como todo o leste europeu a Ucrânia contraiu a escuridão do colaboracionismo com os nazistas. É uma chaga histórica. Tal como a França de Vichy. Mas também isto não significa que o espírito de figuras como Makhno também não construam linhas de fuga num devir libertário (libertário aqui como no sentido próprio da palavra e não no sequestro semântico dos partidários do Instituto Mises). 

O que é fundamental é a colocação da pergunta que todo marxista estabelece como ponto inicial para pensar criticamente qualquer coisa: “a quem esse conflito interessa - a quem ele serve?”. O pacote todo é uma bagunça que mistura períodos de longa duração, tramas de gangsteres, conspirações de bilionários para a tutela o estado e uma complexidade cultural que vai muito além do simplismo reinante”. Lazzarato chama nossa atenção para um fato simples. Não podemos esquecer que sobretudo o problema consiste numa guerra que está em curso e que muita gente está morrendo, como sempre. Um livro fundamental não só para se entender essa guerra como também e principalmente entender as forças que a produzem. Só a propósito, é prazeroso saber que moro numa cidade que homenageia um grande anarquista brasileiro como nome de rua. Não sei quem foi o responsável, mas existe uma rua chamada José Oiticica na cidade. José é avô do artista plástico Hélio Oiticica e uma figura histórica do anarquismo no Brasil. Saudações a todos que vivem para construir uma terra sem fronteiras, sem pátrias nem patrões. 

Capa do livro com a reprodução da figura do anarquista Nestor Makhno
 

Serviço

“O Que a Guerra da Ucrânia Tem a Nos Ensinar”, Maurizio Lazzarato

N-1 Edições

Quanto: R$68,00, 134 pgs.

* Silvio Demétrio é professor do curso de jornalismo da UEL.

Serviço

“O Que a Guerra da Ucrânia Tem a Nos Ensinar”, Maurizio Lazzarato, N-1 Edições R$68,00, 134 pgs.

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