E então você consulta as efemérides. O que são efemérides? São as datas que marcam o tempo que nos separa de alguns acontecimentos importantes: 500 anos do “descobrimento” do Brasil, por exemplo. Nesta sexta-feira desse ano sem graça de 2023 o dia de hoje seria o 80º aniversário de Jim Morrison se ele estivesse vivo. Então você se pergunta “Para que serve isto?” – “fabular”, “imaginar outros possíveis desdobramentos do tempo” responderia uma voz brotada do enxerto entre algum ramo da filosofia e o caule da teoria literária. Um caule que se projeta para o que seria uma raiz, mas que, no entanto, se estabelece como um rizoma. O domínio dos interstícios, dos intervalos e das brechas. Qual seria a transversalidade que um Jim Morrison de 80 anos provocaria a partir do enxerto entre uma poética com fortes marcas do simbolismo de Rimbaud no contexto da cultura de massa e do rock’n roll em 2023?

A melhor de todas as versões de como seria um Jim Morrison octogenário
A melhor de todas as versões de como seria um Jim Morrison octogenário | Foto: Reprodução

É pulsão de morte em qualquer direção. Não porque o rock tenha desencarnado, assim como Morrison, a literatura, a própria razão e quiçá a filosofia e tudo mais que está “up to date” nesse apocalíptico e catastrófico modo de vida pós pandemia. Na verdade, por pulsão de morte se entende esse resíduo do que já se foi e que permanece como um duplo incorporal daquilo que não existe mais. Apesar do massacre que as agências de marketing promoveram quando no começo dos anos 90 do século passado o filme de Oliver Stone pautou a figura de Morrison mais uma vez no contexto da cultura de massa, a densidade da poética do Rei Lagarto (como ele se autonomeava) é algo que ainda produz algum sentido para além do tilintar das bitcoins.

Fui brincar com alguns bots de IA, inteligência artificial, para que eles me ajudassem a criar uma imagem do aniversariante em seu desaniversário de 80 anos. Essa coisa de jogar com simulacros é meio sombria. É como beber vermute. No começo é docinho para depois desincrustar das sombras o pior do medo e do delírio que subjaz no recôncavo daquilo que de mais vil alguém pode ser. Passei obstinadas horas numa busca dessas: “ como seria Jim Morrison com 80 anos segundo o estilo das pinturas de Juan Miró?”. Aí eu desembestei. Repassei tudo o que pude de referências da história da arte. Abusei tanto que apareceu uma mensagem de que era para eu parar. Concluí que existe alguma vida inteligente nessa traquitana toda. Alguma coisa ali percebeu que a coisa tinha derivado para o escracho.

Assim seria Jim Morrison com 80 anos segundo a inteligência artificial
Assim seria Jim Morrison com 80 anos segundo a inteligência artificial | Foto: Reprodução

Na estrondosa maioria dos resultados as figuras todas insistiam em mostrar um Jim Morrison tal qual em seus 27 anos ou menos (ele morreu com essa idade em 1971). Só quando eu avacalhei e pedi à inteligência artificial que me mostrasse uma imagem de Morrison visitando o próprio túmulo no cemitério de Pére-Lachaise em Paris é que apareceu de fato algum cabelo branco na parada. No mais era o Morrison de sempre. O herói trágico que morre jovem em combate no auge de sua vitalidade. Confesso, senti recorrente em quase todos os resultados aquele gosto de chiclete mascado do senso comum. A inteligência artificial não pira. Pelo menos por enquanto.

Aqui de dentro do meu hardware de carne e osso eu consigo imaginar talvez um Morrison um pouco mais hiperbólico. Existem muitas teorias conspiratórias de que ele na verdade não morreu e voltou para Nova York para viver como um sem-teto (se você procurar na web vai encontrar uma porção dessas estórias). É um tanto comum até isso surgir em relação a divindades da mídia – aquela do Paul McCartney ter morrido e um sósia ter assumido seu lugar, por exemplo.

Assim seria o Jim Morrison de Salvador Dali
Assim seria o Jim Morrison de Salvador Dali | Foto: Reprodução

Se Morrison estivesse por aí com 80 anos de idade ele provavelmente acharia um tédio o que ficou como legado dos loucos anos 60: Psicodélicos com a prudência das microdoses, o império do marketing sobre qualquer produção artística sugando até a medula qualquer resquício de singularidade, a estetização dos protestos, o café descafeinado, o sexo seguro, o auto encarceramento auto consentido e iluminado pelos laptops conectados à rede mundial das solidões anônimas e irrelevantes, a algaravia dos discursos identitários que se perdem em torno dos próprios umbigos enquanto a caretagem reaça e retrógrada faz a boiada passar e a humanidade inteira recuar vários passos de uma vez só.

Fabular com efemérides dá nisso: coloca aí pra rolar no streaming alguma coisa como “When the Music Is Over” e lembre-se de apagar a luz quando a música terminar, até mesmo se o sol estiver a pino. Nunca se esqueça: “eu é um outro” (tradução das Iluminations de Rimbaud feita por Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça – Editora Iluminuras). Ficção serve pra isso.

* Silvio Demétrio é jornalista e professor de jornalismo na UEL.