Fugindo um pouco do território fundamental dessa coluna de hoje, gostaria de dizer algumas coisas sobre a campanha de militarização do ensino nas escolas de nosso estado. Educação é produção de subjetividade. Formam-se sujeitos. Isso é educar. Construir singularidades é a única forma de construir uma relação ética em sala de aula. Respeitar o que há de singular em cada novo talento que está ali com seus sonhos e desejos. É uma relação complexa e difícil muitas vezes. Naturalmente difícil e complexa, para quem ensina e para quem quer aprender.

Não acredito em nenhuma concepção de conhecimento que precise se legitimar a partir de um discurso de autoridade. A única autoridade que se deve respeitar é a própria razão e ela é universal, portanto, pertence a todos. De fato, a razão não é uma propriedade. Ela não pertence a ninguém porque só assim ela pode pertence a todos. É dela que nasce o campo da liberdade de pensamento. Ela é emancipatória e, se existe alguma autoridade do saber, ela é circunstancial e sua vida reside na potência dos seus argumentos. Não se constitui por respeito a uma hierarquia. Qualquer forma de educação que não seja horizontal é um discurso de poder. Aprender não é obedecer a comandos.

Horda de zumbis escalam muro de Gaza em “Guerra Mundial Z”, de Marc Foster, 2013
Horda de zumbis escalam muro de Gaza em “Guerra Mundial Z”, de Marc Foster, 2013 | Foto: Reprodução

Esse equívoco é uma sombra que infelizmente sobrevive na medula da alma da política e de uma parcela da população de nosso estado como resquício de uma egotrip reacionária que o país embarcou durante o longo inverno da pandemia de Covid 19. Há muito o que se fazer ainda para desconstruir de fato esse pesadelo.

Por detrás dessa fachada que é chamar o que é apologia do autoritarismo de “cívico” desconfio abrigar-se um preconceito de classe. É como se aos jovens das periferias e dos bairros de classe média baixa coubesse apenas o assujeitamento à ordem estabelecida, sem nenhum horizonte de autonomia possível. Confunde-se educação com assujeitamento. Vende-se a ideia de que a presença física em sala de aula de agentes dos aparelhos ideológicos de repressão do estado fosse a garantia de uma diminuição dos infelizes índices de violência que eclodem pelos bolsões de pobreza de nossas cidades. Em todo o país essa proposta foi um naufrágio retumbante. Policiais e bombeiros da reserva devem ser respeitados em sua dignidade pelo serviço que prestaram à sociedade – para isto basta respeitar a condição de aposentados e garantir ganhos compatíveis com suas necessidades. É justo e é um direito que lhes cabe. Colocá-los dentro das salas de aula é um equívoco e uma usura de sua força de

trabalho. Ainda mais num ambiente complexo como uma escola. Chega a ser perverso. Tanto com os oficiais da reserva quanto com os alunos das escolas.

É algo que está até na dimensão do senso comum: o que se reprime sempre volta como sintoma. A violência e as drogas são sintomas de um modelo de sociedade assimétrico e injusto. As chances não são iguais. É aí que está o que é recalcado pelo equívoco que se fabrica com essa ingerência da política sobre assuntos que dizem respeito ao saber e sua disseminação através da educação. Ensinar não é impor uma determinada imagem do pensamento, senão insuflar a potência de um pensamento sem uma imagem dada. Aprender é aprender a questionar. Não se constrói uma democracia ou seja lá o que for como devir libertário na base da obediência a comandos e palavras de ordem. Educar não é fabricar

zumbis.

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Nenhum adolescente vai deixar de fazer parte da sua família porque arrisca a ensaiar suas primeiras escolhas autônomas. Nenhum empregado pode experimentar o seu trabalho como expressão de suas capacidades e habilidades se ele não se sente respeitado em sua liberdade para tanto. Ninguém deixará de respeitar nenhuma forma legítima de se relacionar com a dimensão do imponderável que compõe todo o arco das religiosidades. A sala de aula é o ambiente natural da dúvida, da liberdade para o questionamento. É só assim que as doutrinas caducam. Quando nos abrigamos em laços familiares por amor e afeto e não por uma obrigação calcada em alguma noção de hierarquia deturpada. Quando trabalhamos porque nos sentimos parte de algo maior que é nosso veículo de expressão e realização. Quando temos liberdade para nos espantarmos com o mundo e o mistério que é essa vida. Não se deixe levar pelo medo, porque é assim que politicamente se constroem pesadelos políticos.

Por isso tudo eu lhe peço: diga não à militarização do ensino no Paraná. Que nossos filhos possam ser espíritos livres.

* Silvio Demétrio é jornalista e professor de Jornalismo na UEL.

* A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.