Daqui a dez décadas nenhum de nós estará por aqui. Sim, é assustador pensar assim, mas também é libertador. Meu pai talvez tenha sido a pessoa mais estoica que conheci e ele dizia que a morte é necessária porque não haveria como o mundo continuar com apenas pessoas nascendo.

Gosto de pensar que não são as pessoas que morrem, mas o tempo que as acompanhava e que lhes era dado parou de fluir. Como se o tempo deixasse de existir para quem aqui nesse mundo não mais se encontra.

Alguém que se vai é a figura de uma centelha do fluxo do tempo que é interrompida. A alma como o tempo que nos habita. Essa centelha de tempo que somos e que deixou de fluir retorna então para o indiferenciado da pura duração indivisa, anterior a qualquer primeiro marco de onde o tempo como sucessão pudesse renascer. Sem divisão. Sem começo nem meio e nem fim.

A morte é o avesso do todo. O lado de lá do manto de Maya. E ela sobrevém assim, numa sexta-feira qualquer muitas vezes sem nenhum alarde.

Ouça "Bussuload of Faith":

Fiquei algumas sextas-feiras sem publicar neste espaço nas últimas semanas porque me permiti o luto de meu irmão, que também era jornalista e se chamava Luiz Roberto Demétrio e partiu numa sexta-feira de setembro. Uma das pessoas mais afetuosas que conheci e com quem aprendi muitas coisas. Conversava com ele praticamente todos os dias, mesmo que à distância, por telefone, zap e qualquer outro meio necessário, às vezes até por telepatia. Foi com meu irmão que aprendi a ouvir música. Sorte. Tinha um bom gosto danado e um feeling para o que era atemporal. Uma lista aqui esgotaria este espaço e o bom senso.

Pensando agora, o atemporal é um atributo de tudo o que enfrenta a morte, a finitude. Algo resta da vã aventura de nossos sonhos mortais. Resiste ao tempo e principalmente à sua interrupção. Torna-se imune ao tempo como sucessão de instantes quaisquer, mensurável segundo algum padrão. Atinge um outro tempo de uma outra natureza. Sem medida. O tempo da duração. Imune ao horizonte de um fim. Um tempo como convite para a participação na vida do todo. Freud denominava essa força como pulsão de morte. Deleuze realiza uma leitura da obra de Proust, "Em Busca do Tempo Perdido", como exercício da potência da arte para se trabalhar com o tempo como matéria-prima.

Toda arte é um aprendizado do tornar-se sensível ao que consegue escapar e, portanto, resistir ao tempo. Participando dessa vida inorgânica que vibra na música, numa tela ou numa poesia temos via essa experiência estética uma participação nesse tempo que dura. Nesse outro tempo que constrói uma fuga à finitude do tempo que se conta.

Daí você leitor me questiona daí da boca do seu estômago: “mas com esse título a coluna de hoje não é sobre o Lou Reed?”. Sim, é sobre o Lou Reed também. Ele também teve seu tempo interrompido nesse mundo. Foi há dez anos atrás e, por sinal foi num domingo. Lou Reed estava com 71 anos idade e naquele 2013 ele tinha iniciado o ano com um transplante de fígado – resultado de uma vida de excessos que costuma acometer todos os entes sensíveis e afetuosos que de vez em quando embarcam nessa nossa nave-mãe Terra.

Não foi à toa que o cineasta alemão Win Wenders o convidou para uma aparição incidental em "Tão Longe, Tão Perto" (continuação de seu grande clássico "Asas do Desejo) – exemplo de cine-poesia concebido em parceria com Peter Handke e que mostrava uma Berlin pós-queda do muro visitada por anjos – o filme é de 1993.

Cena de Tão Longe Tão Perto, de Win Wenders com a participação de Lou Reed:

Wenders explora exatamente esse contraste entre um tempo que pode ser contado, mortal, em contraposição a um tempo que é pura duração, contínuo, a eternidade dos anjos.

Escolhi esse tema e esse dia para voltar a publicar porque assim consigo compartilhar um pouco o movimento que realizo para viver o meu processo de luto.

Lou Reed e meu irmão agora estão “tão longe e tão perto”. Carrego a ambos agora e sempre em meu coração. Sim, conheci Lou Reed com meu irmão e uma das canções dele que gostávamos de escutar juntos era “There Is No Time”, do LP “New York”, de 1989. As letras de Reed são sensacionais porque ele conseguia fazer algo como um rock de breque (como o samba de breque do gigante Kid Morangueira).

Ouça "There Is No Time":

Uma dicção singular a meio caminho entre a frase cantada e a frase falada. Na letra da música desenvolve-se uma estrutura que repete que “não há mais tempo” para uma série de coisas como tapinhas nas costas, comemorações, virar as costas e ir beber e por aí vai. Tudo convergindo para um final apoteótico num grito de distorção de uma guitarra suja como o ressentimento dos moralistas de plantão que não conseguem perceber que nosso mundo é visitado por anjos.

*Silvio Demétrio é irmão do jornalista Luiz Roberto Demétrio e professor do curso de jornalismo da UEL.