A dimensão do impacto que as novas tecnologias da comunicação provocaram no campo do jornalismo foi algo tão intenso que mesmo hoje, em meados da segunda década do século XXI, profissionais e acadêmicos da área ainda não conseguiram formular uma síntese consistente em relação aos rumos que a atividade deve enveredar num futuro mesmo próximo. Apesar do deslumbramento tecnocrático com o potencial de alcance que essas tecnologias dispõem em relação às mídias tradicionais,

o quadro geral é de uma profunda angústia, principalmente no contexto do mundo do trabalho. Antes de qualquer outra dimensão que se analise, viver de jornalismo parece significar algo totalmente diverso do que um dia já significou. De forma paroxística as tradicionais estruturações da atividade como algo alicerçado numa dinâmica industrial deixaram de

vigorar. O modelo da atividade não se nutre mais fundamentalmente da doutrina do fordismo, com as redações organizando-se como linhas de montagem.

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O modelo de negócio das mídias tradicionais se volatilizou em contato com o capital mercurial que flui pela rede mundial de computadores. É o que segundo o relatório de pesquisa da Universidade de Columbia sobre o assunto se chama de jornalismo pós-industrial. As novas tecnologias baratearam e tornaram a produção e publicização de informação extremamente acessíveis e baratas tomando como parâmetro as pesadas e caríssimas tecnologias do mundo do impresso que tem seu modelo na atividade industrial do século XIX. É fato e é irreversível: se não cumprir o mesmo ingrato destino do cine jornal, o impresso jamais voltará a ocupar o mesmo espaço que um dia já lhe foi garantido.

Esgotamos aqui assim esse tom calamitoso da melancolia que se abate sobre o futuro do jornalismo como atividade profissional. Provisoriamente e a título de procurarmos por possíveis devires que não sejam os que nos levem ao abismo vamos pensar que talvez o fim do impresso como fim do próprio jornalismo como atividade seja uma extrapolação um tanto exagerada. Vivemos sim uma tensão que pode ser compreendida como previsível: o capital aproveita um momento de recodificação das relações de trabalho para avançar com sua voracidade. Tradicionalmente tecnologia é mais-valia relativa. É uma sobreposição da lógica de produção do capitalismo sobre si mesma. O medo e aversão que vem das redações tem sua origem aí. É comum em publicações que se tornaram digitais e cuja sede física antes as qualificaria como representantes de um jornalismo regional um enxugamento drástico no número de jornalistas profissionais quando não o encerramento das suas atividades. Nos jornais dos grandes centros a tendência também se verifica, principalmente na contração e sobreposição de funções sobre o profissional de imprensa: cada vez mais, por exemplo, o fotojornalismo cede espaço à imagem fotográfica gerada pelo celular do próprio repórter. É uma necessidade premente que se pense de forma crítica essa submissão. O papel crítico dos cursos de jornalismo e da pesquisa na área é realizar uma reunião de referências encontradas no próprio percurso histórico da atividade que possam alimentar a eclosão de novas possibilidades criativas e que reconduzam essas potencialidades das novas tecnologias para insuflar uma força renovada ao ofício do jornalismo. Sobretudo é preciso querer fazer jornalismo. Reconectar o desejo de contar histórias, de narrar o real.

Leminski no Jornal de Vanguarda, Rede Bandeirantes, década de 80:

Fui buscar uma referência histórica para assim pensar minha profissão segundo um universo afetivo que sempre me cativou. Como diz Ailton Krenak, não podemos nos acomodar nessa narrativa de que o que estamos vivendo é o fim de tudo. Essa narrativa está predominando porque é uma estratégia para que “abandonemos nossos sonhos”. De um ponto de vista estritamente subjetivo faço eco aqui a Waly Salomão que ecoava Calderón de La Barca: “ a vida é sonho!”

Lutar e resistir pela própria vida é um direito absoluto. Lutar pelos sonhos também é então. Não consigo me ver nesse mundo senão como um narrador. Alguém que conta histórias. Alguém que num contexto moderno passou a ser chamado de jornalista. Meus sonhos sempre habitaram uma paisagem que se expressa com as cores da contracultura. Um movimento espontâneo de insatisfação com o jogo binário da política tradicional que se projetou a partir do pós guerra no século passado. É nesse contexto

que vejo na publicação de um jornal hippie da segunda metade da década de 60 nos EUA uma série de signos e sintomas que intuo serem férteis para pensar possibilidades de atuação no árido horizonte do apocalipse digital e que não sucumbam e capitulem diante da despotencialização operada pelo capital para submeter a força de trabalho aos seus ditames de exploração. A força poética e de criação que percorre todas as páginas de todas as edições do San Francisco Oracle guarda preciosas sementes do tempo que podem fazer irromper novas flores na paisagem devastada.

Capa da edição de janeiro de 1967 do jornal The San Francisco Oracle
editado por Allen Cohen
Capa da edição de janeiro de 1967 do jornal The San Francisco Oracle editado por Allen Cohen | Foto: Reprodução

Aqui no Brasil uma profusão de momentos luminosos está guardada no tempo das edições do Jornal da Tarde, o suplemento cultural Nicolau aqui no Paraná, o Jornal de Vanguarda que começou na TV Excelsior e depois reencarnou na Rede Bandeirantes nos anos de reabertura política pós pesadelo da ditadura. Já dizia o gigante Maiakovski, “não existe arte revolucionária sem forma revolucionária”. Nada vai mudar enquanto se insistir em modelos caquéticos e decadentes que veem notícia apenas na tara tecnocrática por planilhas e alíquotas de impostos. Cantemos o desejo como notícia. A própria linguagem como notícia, como novidade, não é isso também uma forma de poesia? Viver deve ser algo sempre belo, ou pelo menos próximo a isso.

* Silvio Demétrio é professor do curso de Jornalismo da UEL. Escreve às sextas-feiras na Folha de Londrina.