Sobre música, cinema e chuva
Rodrigo Grota convida a todos para uma viagem sinestésica com a música de Arrigo Barnabé neste sábado (4)
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sexta-feira, 03 de novembro de 2023
Rodrigo Grota convida a todos para uma viagem sinestésica com a música de Arrigo Barnabé neste sábado (4)
Silvio Demétrio/ Especial para a FOLHA
É por ali, cravado na coordenada que nasce do cruzamento da Piauí com a Rua Rio de Janeiro o ponto no qual o fantasma de Torquato Neto faz suas visitações à Londrina que ele nunca conheceu. É que por ali ainda resta algum jornal que nos serve de motivo para encontros semanais. Também é onde se pode experimentar o melhor café pé-vermelho de todos os tempos e acima de qualquer outra coisa é ali também que renasce o cinema na cidade como arte pelo arco que atravessa do auditório do Espaço Cultural da Associação Médica de Londrina e vai até a Galeria Villa Rica, é outro precioso espaço cultural da cidade. Tudo isso porque na geleia geral de Londrama “alguém tem que exercer a função de medula e osso” e essa pessoa se chama Rodrigo Grota – o cineasta vai muito bem obrigado.
E foi com a chuva que com água do céu tudo viceja que cheguei para uma projeção teste de O Homem Crocodilo – novíssimo documentário-filme-ensaio cinematográfico de Grota sobre a música de Arrigo Barnabé, o bruxo dodecafônico mais londrinense da lendária vanguarda paulistana. “O Homem Crocodilo” vai ser exibido neste sábado (4) em sua pré-estreia no auditório da Galeria Villa Rica com a presença do próprio. E é maravilhoso que Arrigo esteja por aqui mais uma vez e sempre. Arrigo Barnabé é nosso e ninguém tasca! E que ele venha sempre.
Saí comovido da sala de projeção no mais puro sentido do que se entende por comoção estética. São pouco mais de 80 minutos que transcorrem em puros eventos óptico-sonoros: uma autêntica transcriação do universo musical de Arrigo Barnabest para o território da tela grande. Assim como chovia lá fora, por sobre o ecrã a luz se espalhava numa chuva imensa contida numa poça como primeira imagem a vencer a escuridão e evocar o silêncio zen das imagens fotográficas de Haruo Ohara. Em meio a toda a banalidade dos dramas entediantes e profanos de uma terça-feira qualquer desse outubro apocalíptico eu me dei conta de que estava numa sala de cinema de rua assistindo com alguns colegas de profissão uma criação cinematográfica do balacobaco porque tudo isso é aqui e agora. É já. “É muita sorte”, cochichou Torquato Neto. Sentei numa poltrona lá no fundo da sala que era para ficar atrás de todo mundo e não dar bandeira do meu solilóquio entabulado com a companhia espectral do anjo torto da Tropicália.
Só existe criação artística quando se corre riscos. Grota acerta a mão quando não se coloca sob o julgo do previsível. Ele corre riscos ao não optar por um discurso pedagógico – o compositor explicando suas criações. É pelo avesso então - é a música que fala de um Arrigo Barnabé que muita gente não conhece. Arrisco dizer depois de ter assistido ao documentário que o dodecafonismo muitas vezes pode parecer inacessível porque ele é mostrado pela primeira vez em alemão. Quando cantado em português como nas composições de Arrigo ele é absolutamente generoso para com ouvidos e sensibilidades. É leve, como o filme de Grota. Existe alguma narratividade, mas o filme não é essencialmente narrativo. São blocos independentes, tal como ideogramas. Cada composição cria seu fluxo de imagens e o todo ressoa nas partes que o constituem.
Para acompanhar cada bloco de música Grota criou um discurso imagético com material captado durante outras produções, gravações de shows e muito material de pesquisa preciosamente selecionado. Uma imagem em particular me marcou durante a projeção. Foi um plano geral de uma paisagem rural com pássaros voando sob um céu em preto e branco que foi espelhada na horizontal, diametralmente com sua versão em negativo (como se fazia na Nouvelle Vague de Godard ou então no cinema marginal brazuka de Bressane e Saganzerla). Em ressonância com a imagem, a peça Kyrie da Missa In-Memoriam Artur Bispo do Rosário de 2004. E o documentário é rico de momentos assim. Grota faz música com os olhos e conta o tempo com as pálpebras. “é a verdade a vinte e quatro quadros por segundo Bicho” cochicha mais uma vez Torquato Neto.
Uma comparação que dê substância para uma expectativa honesta por parte de você que já está pensando em ir até o espaço Vila Rica no sábado à tarde para celebrar a obra de Arrigo com o filme de Grota seria o filme “O Gênio Excêntrico de Glen Gould”, produção de 1993 dirigida por François Girard e que abordava aspectos da vida do pianista numa estrutura de 32 curtas assim como as 32 partes das variações Goldberg de Bach, peça que tornou Gould mundialmente reconhecido. Grota buscou inspiração para escrever seu roteiro nessa forma de abordar um gênio musical utilizada por Girard. O resultado merece e deve ser comemorado. Não se esqueça de experimentar o café e vá preparado para viver uma comoção estética do começo ao fim. “Londrina és una vila muy rica”, despede-se Torquato Neto. É isso que dá escrever a coluna em noite de Dia de Todos os Santos.
* Silvio Demétrio é professor do curso de jornalismo da UEL e curte Arrigo Barnabest pra baralho.