Cansado de tudo. Da falência moral dos sorrisos que disfarçam o quão ingênuo me julgam. Da vontade alheia de ferrar com o mais alheio ainda sem cerimônia ou pudor, por puro capricho ou desprezo. A faminta paixão pelo avesso de qualquer espasmo de vida. O culto do banal na mesma medida do vulgar. Farpas e cacos de vidros por sobre os muros que nos separam e nos encarceram. A mediocridade da pretensão orgulhosa de sua burrice. A rifa dos dias que se sorteiam em vão por um prêmio que nunca existiu. Cansado. Não, não emagreci nem consegui dar conta de todas as dívidas. Não terminei vários dos vários livros que comecei a ler. O tempo em farrapos. Uma mandíbula cujos caninos são códigos de barras que mastigam tudo. Uma matraca fúnebre e o confete das vaidades espalhado pelo tapete vermelho das frustrações. O perfume de enxofre que sobe das sombras. Sobretudo é o silêncio, a forma mais brutal pela qual o nada responde. A ausência que nos suspende por um gancho em forma de fermata trespassada pelos tímpanos e que nos arrasta para o fosso de nós mesmos. Um sofrimento apático porque insidioso. Ubíquo como um bemol que rouba um semitom de qualquer possível alegria.

A falha, a fome, o vácuo, o falso, o oco. O instante da cãibra durante o salto de um trapézio ao outro. Sem as redes. A tempestade como um coro de palmas e o sono que não vem. A queda: o calendário como um desabamento. Os escombros que se vê enquanto se voa de costas. A mordaça da civilidade sabe à angústia requentada à exaustão. É próprio da armadilha o não ser vista e há algo de teatral em tudo isso. Ser a presa do próprio monólogo porque enquanto se fala exercitam-se todos os dentes rasgando o ar em som e palavras. Devora-se o nada para que a palavra se torne um traço no mundo. Um sucesso de impotência e marasmo coroado pela perda de amigos próximos e de meu irmão. A vida em vertigem sob a pressão do abismo.

É o primeiro dia do último mês de 2023 e a solidão se enuncia num sintagma de algum silêncio que se soma e dá o perímetro de 3 sombras que ficaram - quando uma pessoa parte a sombra dela continua a vagar por este mundo, diluindo-se para se somar às sombras dos viventes disfarçada. As sombras que projetamos por barrarmos a luz se torna ainda mais densas no luto. A luz em luta, a sombra. O dever da guerra e a deserção. A vida com todas as suas armadilhas e becos sem saída, mas também com seu mel de desejos e memórias. Um pouco antes da morte do meu irmão sonhei com monges do monastério de Gyuto que desenhavam uma mandala durante uma cerimônia do budismo tibetano. Eles desenham essas mandalas usando areia colorida num processo que pode levar muito tempo. Ao finalizarem o desenho os monges o apagam arrastando espátulas da margem em direção ao centro do desenho. É um ritual no qual se celebra o desapego.

Monges desenham com areia uma mandala

No meu sonho os monges começaram esse processo de desconstrução, mas em determinado momento um monge olhou para mim sorrindo: “essa não é de areia, é açúcar”. Logo em seguida esse mesmo monge pega um punhado de açúcar colorido com a mão e começa a comê-lo daquele jeito infantil e profundo que só os monges sabem. Sonhos são mandalas que destruímos quando arrastamos as pálpebras ao acordarmos para a areia nos olhos desse mundo ilusório. E então voltamos à falha. A falta. Agora imunes porque o desapego ao transitório é uma paixão alegre.

Estar no mundo como uma criança que sorve o seu açúcar aos punhados. A inocência da aceitação e o desapego em relação ao todo. “Panta rhei” – “tudo vibra”, como no filme de 1952 do holandês Bert Haanstra. O todo nunca morre. O que se destrói é a ilusão de que se é em separado. O ser à parte é que é transitório. Sentir o ser como algo maior e que contém todas as possíveis mandalas que ainda não se desenharam. A potência, o vir-a-ser. É assim que ao se olhar para dentro se ganha o fora. Tudo vibra. Tudo vive. Aquilo que em mim vive reverencia e saúda tudo aquilo que também vive para além da minha ilusão em ser à parte. Sombras e luz, tudo é necessário.

Panta Rhei, filme de Bert Haanstra de 1952

* Silvio Demétrio é jornalista e professor do curso de Jornalismo da UEL.