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AOS DOMINGOS PELLEGRINI 5m de leitura

Visita de nenê

Ele cai de quatro mas logo senta no piso, como quem analisa a situação, e volta engatinhando ao sofá, revelando essência da nossa evolução

ATUALIZAÇÃO
18 de agosto de 2023

Domingos Pellegrini
AUTOR

Imagem ilustrativa da imagem Visita de nenê

Ele chega no colo mas logo quer ir para o chão, onde fica engatinhando no meio da roda de pessoas sentadas. E ele vai de pé em pé, a exercitar o que é tão próprio dos animais, a curiosidade e a exploração, que no passado primitivo nos levaram de vale em vale e de continente em continente pelo planeta.

Depois, apoiando-se na beirada de um sofá, ele faz num instante o que levamos milênios para fazer: levanta-se, tornando-se bípede.

Dá uns passinhos se apoiando no sofá, nos olhando como a buscar apoio ou aplauso para a façanha.

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Em seguida ele olha o espaço entre as pessoas sentadas, como decerto nossos antepassados olhavam o desconhecido vale vizinho, e se aventura, tirando as mãos do sofá e dando alguns passos.

Aí cai de quatro mas logo senta no piso, como quem analisa a situação, e volta engatinhando ao sofá, revelando  essência da nossa evolução, a vontade de aprender. Levanta-se com apoio do sofá e de novo aventura andar, mas cai de novo, aí chora.

É um choro curto, porque mais uma vez ele volta ao sofá, levanta-se e dá alguns passos, então sorri com o rosto ainda molhado de lágrimas, em pé como um vencedor.

Anda até uma pessoa sentada com cavaquinho no colo, e se encanta com o cavaquinho, bate na madeira, belisca as cordas, maravilhado com o som.

A mãe tenta então lhe dar papinha, ele não abre a boca, ela insiste, com a mão ele afasta a colher, em humana determinação.

A pessoa do cavaquinho começa a tocar e ele, em pé e com as mãos nos joelhos do músico sentado, fica ouvindo, paradinho como os seres humanos param diante de arte.

Depois, cansado de ficar em pé, desaba e volta a engatinhar, visitando os pés e sapatos da roda, até que alguém lhe dá uma tampa de panela e uma colher de pau. Sentado no piso, ele põe a tampa no meio das pernas e passa  a bater com a colher, repetidas vezes e até no ritmo da música, tanto que alguém brinca dizendo que ensaiaram.

Em torno todos estão atentos a seu recital, até que ele enjoa de repente e fica olhando as luzes do teto, novamente tomado pela velha curiosidade. Então enfia na boca o cabo da colher de pau, a mãe quer tirar, ele não deixa, agarra de volta, bota de novo na boca. Ela quer retomar a colher, ele grita revelando a humana capacidade de protestar. 

De novo com sua colher, ele bate no chão, volta a bater na tampa de panela repetidamente, bem no ritmo da música, tanto que recebe aplausos e, surpreso, sorri como agradecendo.

Mas já enjoa de arte e, engatinhando, volta à exploração dos pés das pessoas e das cadeiras,  até que para, sentando e olhando para todos como a perguntar: é só isso que vocês têm pra mim?

Então alguém resolve bater foto e ele é levantado do chão para ficar no colo da mãe no centro da foto, mas que. Não quer, chora, dão-lhe  carinho e agrados mas ele continua chorando, sai chorando na foto. Só para de chorar de volta ao chão, um ser voluntarioso e determinado como são os humanos.

Revê a tampa de panela, a colher de pau, mas boceja, a mãe diz que é hora dele nanar. É, fala alguém, são cheios os dias dos nenês, né. 

* A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina

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