O menino Ziraldo
PUBLICAÇÃO
sábado, 13 de abril de 2024
Domingos Pellegrini
A foto com Ziraldo foi numa das vezes em que ele passou por Londrina. Antes, em 1986 viajamos pela Alemanha, em grupo de escritores a convite do governo alemão, quando pude conhecer melhor o criador do Menino Maluquinho.
No Mainecke Hotel, em Berlim, já tinha mais de cem anos o elevador que Ziraldo apelidou de Goethe:
- Tem a durabilidade da qualidade.
No imenso zoológico, quando paramos para descansar da longa caminhada, ele falou que estava triste:
- De ver tantos bichos presos, tantos bichos tristes, principalmente os macacos. Prender macacos é que nem prender gente!
Os rinocerontes ficavam em grandes baias com muros metálicos abaulados por suas chifradas, e Ziraldo ficou feliz:
- Pelo menos eles reagem.
Nos últimos anos, ele andava no seu apartamento em cadeira de rodas, fazendo lembrar de quando ele apontou cadeirante que, em cadeira motorizada, deslizava suavemente por calçada perfeitamente plana e lisinha:
- Deus permita que eu não morra sem antes ver calçadas assim no Brasil.
O hotel, no centro de Berlim, tinha árvores no que se podia chamar de quintal, onde passarinhos cantavam, e num café da manhã, quando os outros escritores contavam o que tinham visto de notável no dia anterior, naquela civilização de grandiosas orquestras e balés, imensos museus, praças impecáveis e monumentos memoráveis, Ziraldo foi o último a falar:
- O que estou achando mais bonito é ouvir os passarinhos do hotel.
Vinte anos depois, no mesmo hotel com Dalva, ouvimos os passarinhos e fiquei lembrando de Ziraldo. Quando numa quadrada mesa-redonda alguém lhe perguntou sobre O Pasquim (que acabaria em 1991), ele lamentou:
- O Pasquim vai acabar acabando, porque quem sabe criar não sabe administrar, que nem eu. Se eu soubesse cuidar direito de minhas obras, seria milionário. Mas não lamento, porque se soubesse administrar não seria Ziraldo.
Convidou para irmos fazer compras, comprei uma navalha para meu pai que foi barbeiro e elogiava as navalhas alemãs, e ele comprou dois coletes, aí explicou:
- São uma marca pessoal, tenho mais de quatrocentos. Antigamente, vestiam colete com paletó, e agora eu visto colete sem paletó. É como dizer que, em parte, eu queria ser como naquele tempo. E sem paletó, como a dizer que sou um jovem de hoje...
Tomando vinho do porto:
- Vinho do Porto é como Portugal: é um vinho que nem parece vinho, como Portugal nem parece europeu, e toma-se em pequena dose, como Portugal é pequeno, e te deixa alegre como visitando Portugal. Noutra encarnação quero nascer português e ser embaixador no Brasil, pra juntar o bom e o melhor.
Então eu escrevia contos pensando em escrever romance, e ele sentenciou:
- Não escreva pros entendidos mas pra quem quer entender, senão entedia.
Fazendo isso, passei a estar sempre com Ziraldo. O menino que assim se despediu do elevador:
- Não saia daí, hem, meu velho!
Era um menino.