Não é à toa que a gente nasce onde nasce, né? Para a grande maioria dos nascimentos, o local de nascimento teceu-se na teia de encontros e namoros, casamentos e migrações, mudanças de cidade ou de país dos pais e avós e bisavós etc, até o grande dedo do chamado destino dizer “é aqui que você vai nascer”.

Quando comem terra, os nenês parece que incorporam o território ao organismo. Crianças que brincando se sujam de terra estão como que assumindo o sonho de terra de sua linhagem. E a vida vai mostrando que ser alguém é também reconhecer-se na origem, reconhe-ser dos pés ao sotaque, herança de tantos falantes.

O sotaque londrinense, de falar leiti em vez de leitê, como em Curitiba, já demonstra que não viemos do tropeirismo mas da cafeicultura, nossa língua matriz é paulista e não gaúcha, tanto que aqui nem temos piás, só guris.

Na juventude, sonhei ser cidadão do mundo, sem pátria, dissolvendo a chã nacionalidade no sonho do internacionalismo comunista. Que bobagem, a terra-vermelha me chamou à realidade com a geada de 1975, quando vi um fenômeno natural, da terra e seu clima, produzir tantas transformações. E então vi também que, para transformar o mundo, há que se partir da própria terra, em vez de querer se impor à terra, e daí nasceu meu romance Terra Vermelha.

Quando em 1982 José Richa chegou ao Palácio Iguaçu como primeiro governador nortista, eu já estava pronto para aceitar com prazer o apelido que jocosamente deram a seu pessoal novato de poder, pés-vermelhos, pensando que isso os melindraria... e o que todos, lá e no Norte e no Oeste fizemos foi, isso sim, assumir com orgulho. Foi quando escrevi o poema que revejo com os pés e o coração vermelho:

O nosso nome-de-guerra

vem desde lá quando a gente

batia enxada na terra

da madrugada ao poente

pés vermelhos de poeira

*

Ser pé-vermelho é

ser negro e ser imigrante

sobrinho de libanês

cunhado de japonês

bisneto de sitiante

*

Ser pé-vermelho é ter

esperteza de mineiro

alegria de nortista

persistência de tropeiro

prontitude de paulista

*

É olhar para o horizonte

já vendo estrada até lá

no rio antevendo a ponte

o dia a nascer da noite

o amanhã desde já

*

Com a bênção do suor

e amor no coração

ser de qualquer cor por fora

e ser por dentro da cor

da nossa terra e da aurora