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AOS DOMINGOS PELLEGRINI 5m de leitura

No deserto do cinema

ATUALIZAÇÃO
19 de agosto de 2021

Domingos Pellegrini
AUTOR

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O cinema da infância trepidava com nosso tropel, batendo os pés quando o Zorro se metia em apuros, aplaudindo quando se livrava como sempre. Mas me intrigava como ele escapulia de cela cuja parede ia se fechando, quebrando móveis, e certamente esmagaria nosso herói se, no episódio seguinte, ele não achasse um jeito  de sair dali, onde, aliás, os móveis continuavam inteiros... Aquela falta de lógica irritava, até que alguém explicou que “cinema é assim”. 

Também  irritavam os tiroteios intensos sem recarregar armas, fossem  os mocinhos piratas, cowboys ou policiais.  A lógica sofreria mais ainda com os filmes de, por exemplo, Schwarzenegger e Stalone, em quem os vilões muuuuito atiram, nunca acertando, enquanto eles acertam todo tiro... Mas, ao menos, ainda eram filmes com mocinhos. 

Depois vieram os filmes de apenas bandidos contra bandidos, como  os de Tarantino e Scorcese. Na envolvente série Kill Bill, de Tarantino, uma grávida deixa de ser assassina profissional, mas é atacada por ex-colegas, passa anos em coma e, quando desperta, vinga-se matando todos – como quando era assassina profissional... As mortes são rituais de sadismo, com lutas coreográficas não só banalizando como  enfeitando a violência. Símbolo idiota desse tipo de filme é a recorrente cena em que vários  apontam arma para a cabeça de outro – mas ninguém atira, claro, ou acabava o filme... 

Já o último filme de Scorsese, O Irlandês, é sobre mafiosos contra mafiosos, reafirmando sua adoração pela bandidagem, chegando para isso a adulterar a História: seu filme Gangues de Nova Iorque termina com legenda informando que assim, com lutas entre gangues, fez-se a história da cidade – que porém foi feita por gente trabalhadora, ou as gangues nem teriam a quem roubar. 

Agora, dominam os canais de streaming os filmes que contam com nossa fascinação por lutas de poder e conflitos violentos. E tome tiros, veja lutas que, se acontecessem de verdade, deixariam os lutadores em coma – mas eles se levantam impávidos, o bandido para um último golpe, o mocinho para se defender matando o bandidão depois de liquidar dezenas de seus asseclas. Esses morticínios são em seguida esquecidos pelos roteiristas, para continuidade do roteiro e enterro da  verossimilhança, pois, se acontecessem na realidade, seriam notícia mundial. 

Agora, temos também a irritante mania de muitos filmes, produzidos pela Netflix, começarem com cena de grande impacto, para logo surgir letreiro: tantos dias ou anos antes... A barateza desse recurso tão repetido torna os filmes filhos da mesma mesmice, revelando uma visão manipuladora do público e barateadora da arte do cinema. Tantos filmes acabam assim se parecendo, como se produzidos num mesmo deserto ético e afinal nos deixando com sentimento de vazio: “porque fiquei vendo isso?” 

Nisso nada supera os filmes de lutas marciais, em que os lutadores voam acima de qualquer lógica. Dá até saudade do cinema bisonhosco, mistura de tosco e bisonho mas com pés no chão e cabeça no lugar, de Mazzaropi...  

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