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AOS DOMINGOS PELLEGRINI 5m de leitura

Inveja de cão

O que mais invejo em Branquinha é o relaxamento, que transparece quando ela dorme de patas abaixadas e largadas.

ATUALIZAÇÃO
17 de novembro de 2023

Domingos Pellegrini
AUTOR

Imagem ilustrativa da imagem Inveja de cão

         “Inveja do cão” é expressão antiga a significar muita inveja, mas no meu caso é só inveja de uma cachorra mesmo, nossa Branquinha aí da foto. Invejo ela dormir assim, de barriga para cima, toda defesa esquecida, o umbigo desguarnecido. Que paz e que entrega!

         Durmo virado de lado, como em posição fetal (o que faz lembrar que tudo afinal findará por ter começado...). Só na mocidade conseguia dormir de bruços, mas o velho pescoço passou a reclamar, os músculos e os ossos conspirando para torcicolos e dores.

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         Não é porém esse sono costal que invejo em Branquinha, é o relaxamento, que transparece mais quando ela dorme de patas abaixadas e largadas. Embora dormir seja o que ela mais sabe fazer, é entretanto de admirar como num instante se abstrai do ambiente, tipo “nem estou aí” para quem estiver por perto.

         Admiro também seu ressonar compassado feito fole, as costelas subindo e descendo, na confiança de ser dona de seu tempo e seu lugar.

         Mas eis que ela trisca as orelhas, os olhos se mexem sob as pálpebras, o que estará ela vendo no seu sonho?

         Pode estar caçando, como na noite em que, eu junto à fogueira no quintal, ela nos meus pés como sempre, de repente levantou latindo e foi fuçar nuns arbustos.

         Fez lá um alvoroço, com uma selvageria de repente surpreendente – e  voltou trazendo na boca um filhote grande de gambá. Deixou no chão o bicho ferido e ficou de guarda, o rabo feliz. O gambá tentava fugir, ela abocanhava e chacoalhava, deixava de novo no chão, esperando para mais se divertir ou reviver a caça selvagem de seus ancestrais.

         Em gatos lidando com ratos, essa diversão com a caça parece até sadismo, mas na nossa amorosa cachorra isso foi espantoso, revelando a permanência dos instintos.

         Ela ainda continuava acuando o pobre gambá quando voltei para a casa, e no dia seguinte, quando fui recolher o corpo, ela ficou de lado olhando com desinteresse, sem nem cheirar. Não matou o bicho para comer, como seus ancestrais lobos, mas talvez para afirmar-se dona do território, seu quintal, seu companheiro de fogueira, fazendo assim me sentir co-responsável. Então embrulhei pesarosamente o pobre gambá...

         Agora no seu sono, depois que faço a foto, de repente ela passa a arreganhar os dentes, como a morder  ou a se defender, continuando portanto a lutar.  

         Mas eis que toca o cincerro (nossa casa não tem campainha, tem cincerro)  e suas orelhas se levantam, num instante está lá no portão, pronta para defender nosso território.

         Se o visitante tiver cachorro em casa, ela cheirará bem seus sapatos. Se a pessoa tiver medo, ela latirá, decerto interpretando o medo como preparação de ataque. Se não, logo estará rodeando para pedir carinho e, se conseguir, abanará o rabo para mais um amigo, sociável que só.

         E, pensando melhor, minha inveja não é só de seu sono, mas também de sua disposição para ser social, sempre disposta a conhecer gente e cachorros, cheirar e lamber.

         Cães são mesmo os bichos mais humanos, parece que até no sono. E acabo de escrever isto, ela desperta e me olha como se concordando...

* A opinião do colunista não reflete,. necessriamente, a da Folha de Londrina.

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