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AOS DOMINGOS PELLEGRINI 5m de leitura

Inferno e paraíso

Assim, os valores ditos civilizados não são diferentes nem melhores do que os do índio visto como primitivo

ATUALIZAÇÃO
07 de dezembro de 2023

Domingos Pellegrini
AUTOR

Imagem ilustrativa da imagem Inferno e paraíso

         O inferno são os outros, escreveu Sartre. Mais azedo que ele, Albert Camus também visitou o Brasil e escreveu o livro Diário de Viagem, onde lamenta desde o  clima até as  festas que lhe fizeram. Chega a lastimar que todos ouviam  “um negro que compõe todos os sambas que o país inteiro canta”, Dorival Caymmi...

Com muitas observações assim, Camus revela uma presunção europeia que o cegou para o Brasil. Veio não para ver um novo país e conhecer outra gente, mas para julgar tudo com olhos de francês superior. 

         Ao contrário dele, o também francês Claude Levi-Strauss escreveu sobre suas viagens pelo Brasil o monumental Tristes Trópicos, onde há trechos assim sobre Londrina em 1935:

“Os emigrantes estavam inteiramente entregues às alegrias da abundância; famílias da Pomerânia ou da Ucrânia, que ainda não tinham tido tempo de construir casas, partilhando com o gado um coberto de tábuas armado junto do riacho, cantavam essa gleba milagrosa cujo ardor fora necessário quebrar primeiro, como se tratasse dum cavalo selvagem, a fim de que o milho  e o algodão frutificassem em lugar de se tornarem vegetação luxuriante. Um cultivador alemão chorava de alegria mostrando-nos o pequeno bosque de limoeiros nascido de algumas sementes.”

Camus olhava para julgar; Levi-Strauss, para entender.

Não à toa, Levi-Strauss reinventou a antropologia, ao ver e revelar que todas as civilizações, desde as tidas como avançadas até as vistas como primitivas, pautam-se por estruturas sociais semelhantes. O cacique não difere do primeiro-ministro ou do presidente da república. O ritual indígena não é oposto às celebrações religiosas, é a mesma coisa apenas com outra roupagem.

Assim, os valores ditos civilizados não são diferentes nem melhores do que os do índio visto como primitivo; e o problema para todos  é praticar esses valores, como bem apontou Jesus. Ou como diz o caboclo:

- Pra sê feliz é priciso antes desejá a felicidade dosotro, memo nimigo. E, pra sê infeliz, é só cê desejá  mal prosotro, com inveja, ciúme, intriga, que tudo isso vorta procê memo como rancô e margura, roendo por dentro quinem cupim. E infim cê fica vazio quinem madera que cupim furô...

 Primeira música de sucesso de Gilberto Gil, Louvação, com letra de Torquato Neto, começava assim: “Meu povo, preste atenção / repare se estou errado / louvando o que vem merece / deixando o ruim de lado”.

A música louva também “o jardim que se planta / pra ver crescer a roseira / e a canção que se canta / pra chamar a primavera” – na  crença de que as coisas melhoram quando se faz por merecer. Ou conforme o caboclo:

- Osostro pode sê um inferno procê, si ocê só vê o ruim nosotro. Se ocê percura vê o bom nosotro, cê só mióra e osostro mióra procê... Tem quem tem medo de abeia, achando que vai picá, e tem quem ama abeia porque faz mé...

Ao contrário do que escreveu Sartre, os outros podem ser o paraíso.

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