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A CIDADE FUTURA 5m de leitura

Socialização personalizante

O colunista Marco A. Rossi escreve sobre o filme "Um homem sem importância", suas implicações históricas e sociais

ATUALIZAÇÃO
01 de agosto de 2023

Marco A. Rossi
AUTOR

Imagem ilustrativa da imagem Socialização personalizante

No filme “Um homem sem importância”, de Alberto Salvá, lançado em 1971, Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, interpreta um rapaz de 30 anos num dia nada insólito. Depois de perder o emprego de maneira injusta e discutir com o pai, com quem ainda vive, sai em busca de novo trabalho. Sem estudo nem qualificação, Flávio, o protagonista, perpassa horas de intensas contradições, algo bem típico do furacão da modernidade.

A história se passa num Rio de Janeiro que preserva certa atmosfera romântica. Não há retratos da censura ou das perseguições políticas. Ao mesmo tempo, a crítica ao Brasil que declara “Ame ou deixe-o” está viva na tela, sendo explorada numa realidade de pouco amor, muita alienação e sentimentos indiferentes à dor do outro. O roteiro informa que os tempos sombrios invadem as entranhas da vida e não permitem que nada

escape.

Em breves 70 minutos, em preto e branco, o filme de Salvá circunda uma sociedade na qual prevalece o “salve-se-quem-puder”, com indivíduos arredios, crentes de que os outros representam ameaça. Após inúmeras tentativas de obter emprego, a personagem de Vianinha termina o dia desconsolada, ciente de que o amanhã não será nada diferente. A repetição dos fatos esgota ânimos, implode potenciais criativos e acirra as animosidades em família. Adulto, sem dinheiro e dependente dos pais, Flávio é confrontado com um mundo sob hegemonia do capital, desumanizado, interessado no lucro fácil, mesmo que para isso as pessoas tenham de se transformar em meras peças da engrenagem – muitas delas com prazo de validade vencido.

 

A existência, contudo, é repleta de sinais contrários, gente disposta a trafegar na contramão. No curso de um dia que lhe joga na cara uma gigantesca desimportância, Flávio conhece a gratuidade da amizade e o esplendor do amor. Entre extremos de eventos só aparentemente desconectados, o filme vislumbra o drama da condição humana, condenada a existir em meio a conquistas e derrotas de quilates desiguais.

Resta a questão: o que de fato importa?

“Um homem sem importância” denuncia o gosto amargo que a corrida pelo dinheiro impõe à boca da vida. Não se trata da busca por um emprego ou da necessidade de ocupar corpo e mente. O objetivo primeiro de tudo é a sobrevivência, cujo imperativo desnuda comportamentos hostis e ambiciosos. No plano de nossos desafetos cotidianos, irrompe o tipo humano burguês, forjado na ideologia de competir, empreender e não olhar para trás. Em seu rastro, contudo, jaz o sentido da vida, um grito que implora por fraternidade e cuidado. Viver pode ser interessante, desde que prioridades sejam revistas e o modo como a sociedade se organiza, revolucionado.

Urge, então, o desafio de desenvolver uma “socialização personalizante”, por meio da qual sejam dignificadas tanto a dimensão individual da existência quanto a alma da vida comunitária. A história vem optando por um dos extremos, sacrificando a singularidade ou deificando a totalidade. Para que homens e mulheres sejam realmente importantes é preciso apostar nessa difícil tarefa de conciliação.

* A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.

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