Numa de suas colunas mais recentes em O Globo, o escritor angolano José Eduardo Agualusa, de quem sou fã declarado e apaixonado, narra com certa amargura esses tempos tão estranhos que temos vivido. Lá pelas tantas, Agualusa fala do sumiço da realidade. Se mantivermos nossos sentidos atentos, chegaremos a conclusões semelhantes: não importa para onde dirijamos a atenção, parece mesmo que a realidade bateu asas e desapareceu.

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Há poucos anos, sem ter noção do que estávamos fazendo, elegemos um amante das armas para o mais alto cargo da república. O resultado foram anos de negacionismo científico, falsificação da história, gestão caótica do comum, vergonha internacional e pelo menos meio século de retrocesso civilizacional. Agora, dando provas de que a tragédia é antecedida por farsas sempre, os argentinos congraçam um indivíduo performático, que brotou de redes sociais nas quais se sentia à vontade para proferir absurdos cotidianos sem pena. O pior dessas tristes experiências é o tipo humano que elas fabricam.

Acho que desde 2013 a realidade dava pistas de seu cansaço e de que iria partir sem aviso prévio. Costumo pensar aquele ano como um divisor de águas para o embrutecimento dos espíritos e a tomada do céu pela intolerância e a mais estrondosa ignorância. É óbvio que esses que aí estão pregando a militarização das escolas, destilando preconceitos e adorando filósofos de araque (e de maldade explícita) já existiam. Mas de lá para cá eles foram se sentindo encorajados a dizer o que pensam e a fazer o que antes era só delírio.

Até 2013, ministrando aulas em instituições privadas de ensino, eu conseguia propor reflexões livres, apresentar os autores e as obras que aprecio e considero importantes para entender a realidade, essa senhora cujo paradeiro é hoje desconhecido. Depois que o medievalismo enrustido de nossa sociedade passou a ter tranquilidade para distorcer fatos, mentir descaradamente e odiar sem limites, tive dificuldades para debater democraticamente ideias, valores, acontecimentos. Em toda sala de aula havia um ou dois sujeitos babando, gritando, desrespeitando colegas e professores, anunciando-se inimigos da realidade. Foi quando todo mundo que ousava ser livre virou demônio. Sim, junto com as teorias conspiratórias e o fantasma do comunismo, os mortos-vivos deram início à sacralização de suas almas profanas. Sabe aquela coisa de “pessoas de bem”?

Pois é.

Toda essa exaltação do “bem”, sob cortejo militar e cantorias de igreja, não teme evidenciar que considera uns mais iguais do que os outros. No caso, são eles os animais líderes da fazenda de Orwell. Podem beber uísque, dormir em camas com lençóis limpos e até andar de pé, usando as patas da frente para tremular bandeiras de arrivismo e incompreensão histórica. Em cinco minutos na (má) companhia de um de seus representantes, voltamos para as trevas da ditadura militar, assistimos à idolatria por reis e princesas, flagramos rezas íntimas em espaços públicos, lamentamos invasões em escolas para punir educadores ou bate-boca de esquina para acusar o vizinho descolado de esquerdista antifamília. De fato, não há realidade que aguente.

* A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.