Já escrevi algumas vezes quanto admiro Padre Júlio Lancellotti. O trabalho que ele desenvolve é digno de aplausos e amplo reconhecimento. Num país marcado por extremas desigualdades – e maculado pela indiferença generalizada dos setores intermediários da pirâmide social –, não é pouca coisa dedicar a vida àqueles que estão à margem dos direitos humanos mais elementares. Surpreendentemente, Padre Júlio é vítima constante de ataques sórdidos, que lhe prometem perseguição e até morte.

O Brasil, tão desmemoriado, é surreal. Homenageia torturadores e debocha de lutadores por um mundo melhor. Assisto incrédulo às encenações que, com palavras, gestos e imagens, grupos cada vez maiores promovem contra quem ousa sonhar novos mundos.

Com pinta de rebeldes (e corações corroídos), os reacionários imaginam eliminar dos mapas a utopia. Eles não provêm de grandes travessias, não nutrem nenhuma historicidade. Apenas odeiam, sem pestanejar nem enrubescer a cara.

Nos últimos dias, defrontado com novos ataques ao Padre Júlio, pensei noutro brasileiro impressionante e sempre necessário: o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Uma minissérie sobre sua trajetória está sendo exibida pelo Globoplay, um serviço de streaming. É emocionante regressar às décadas de 1960 e 70 e reencontrar Henfil, Chico Mário e o criador do “Natal Sem Fome”, os três irmãos de sangue que tanta beleza e inteligência ofertaram ao país. “Betinho, no fio da navalha”, a série, coloca o espectador diante de uma memória que boa parte das novas gerações não quer revitalizar – sem falar numa parcela significativa de velhas gerações que existiram até agora alheias a tudo, mergulhadas em frias trevas e cobertas por falsas bandeiras verde-amarelas.

Padre Júlio e Betinho têm em comum o horror à miséria, a extrema indignação diante do fenômeno da fome e da inanição de multidões frente a essa chaga que nos consome e envergonha. Eles também comungam uma impressão geral: o abandono e a exclusão não são dados da natureza; por isso, não podem ser enfrentados somente pela caridade.

Estar fora das fronteiras do consumo, do bem-estar e de uma vida que possa gerar alegria não é uma mera questão de azar; é, antes de tudo, um sintoma do modo doentio como arranjamos nossas práticas de coexistir. Para combater o “mal”, como querem os amantes de armas e fiéis a deuses de papel, é preciso denunciar os “maldosos” e a estrutura social que tão bem lhe serve. Fora disso, é dar remédio para gente morta.

O sacerdote e o sociólogo representam o Brasil que vale a pena e simbolizam uma identidade nacional que reconhece seu passado, encara o presente e insiste em construir um futuro longe das amarras dos poderosos de sempre. Por não temerem acusar o estrago que fazem os portadores do ódio e da indiferença, seu legado é contestado. A quem diga que a igreja deve se importar só com a fé. Fé sem obra? Fé sem amor? Fé sem coragem? Se assim for, nunca tive fé. Amém!