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Marco Rossi - A Cidade Futura 5m de leitura

Monólogo coletivo

O “idiotes” não gosta do diálogo. Prefere o monólogo. Todos que se lhe opõem são declarados inimigos

ATUALIZAÇÃO
18 de março de 2020

Marco Rossi
AUTOR

Imagem ilustrativa da imagem Monólogo coletivo

Numa época de informação em tempo real, fica difícil para os indivíduos o apelo exclusivo a si mesmos. Não dá para confiar numa capacidade infalível de discernimento. É muita coisa acontecendo, deixando de acontecer, apavorando. Por mais ilustrada e sensata que a pessoa seja, errar é regra. Cedo ou tarde, a frustração vai bater à porta.

 

Os antigos gregos entendiam o ser singular como “ídion”. Trata-se da dimensão humana ciente de que o todo lhe é maior, envolvente e complexo. É na inter-relação permanente que as partes se reúnem e formam o gênero humano. Como é impossível abraçar toda a humanidade e dela se sentir membro plenipotenciário, os indivíduos se aproximam de grupos que possam representar seus interesses e nutrir afetos: templos, partidos, sindicatos, associações profissionais, clubes esportivos, etc.

Até aí, tudo bem. Não pode haver problema algum na defesa de familiares, amigos e confrades. O drama é quando o “ídion” se enrijece e, nas suas expressões mais superlativas, se converte em um ser arrogante, crente na posse da verdade. Nesse momento, diriam também os velhos gregos, surge o “idiotes”.

O “idiotes” não gosta do diálogo. Prefere o monólogo. Todos que se lhe opõem são declarados inimigos. O “lado de lá” – sim, o “idiotes acredita que a vida só tem dois lados: o certo (o dele) e o errado (o de todos os outros) – é constituído de gente impulsionada pelo desejo de mentir, roubar e matar. Em resumo, o “idiotes” se vê como o “bem”, a encarnação daquilo que existe de melhor como modelo de vida para todos.

A conspiração é a matéria-prima da quebradiça autoconsciência do “idiotes”. Como não dialoga nem consegue admitir razão no “outro lado”, tende a negar a história e, assim, imaginar assumir papéis centrais na trama da vida. Ama intensamente certas figuras para, depois, dizer-se traído. Ancora-se em quem pode lhe dar impulso para, tão logo quanto possível, induzir o desafeto à morte (literalmente, às vezes). O “idiotes” contemporâneo enxerga comunistas em toda parte, nas escolas, na imprensa, na casa do vizinho, no trânsito, na igreja, nos parques... Seu hobby é colecionar pedaços do Muro de Berlim e frases feitas do marxismo soviético, reduzindo o mundo externo a fervorosos adeptos de uma realidade que não existe mais. O “idiotes”, portanto, sofre de uma moléstia incurável: sua mente travou no tempo.

Por falar em moléstia, o “idiotes” acha que pandemias são manifestações da histeria esquerdista. Acredita que o Chico Buarque é agente da KGB e a “extrema-imprensa”, devidamente alinhada com a ONU, Bill Gates e o Greenpeace, trama pela volta de Lenin, sob regência etérea, ao poder global. Os globalistas, aliás, querem impor que meninos virem meninas e vice-versa. É por isso que o “idiotes” adora armas de fogo: precisa estar preparado para eliminar o Senhor das Trevas à bala, se for preciso.

O monólogo coletivo é o objetivo de vida do “idiotes”. Ele quer que todo mundo o aplauda, dê “likes”, parabenize-o pelas asneiras que diz e faz. O “idiotes” prescinde de argumentos e determina estar ao lado da pureza divina. Vive no mundo da Lua, de onde observa, feliz, a enorme superfície plana da Terra.

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