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Marco Rossi - A Cidade Futura 5m de leitura

Hoje não tem coluna

ATUALIZAÇÃO
28 de outubro de 2020

Marco A. Rossi
AUTOR

Admiro quem escreve diariamente para os jornais. Pela manhã, quando navego pelos meus periódicos favoritos, acesso primeiro os colunistas diários. Interrogo-me sobre o artigo do dia seguinte. De onde virá a inspiração? E se der branco? E se o sujeito passar mal? Na manhã seguinte, sem saber o que poderá ter ocorrido, lá estará a nova coluna. Milagre?

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Não enfrento esse desafio. Escrevo somente uma vez por semana. Ainda assim, confesso, fico em dúvida sobre o que escrever de vez em quando. A questão nunca é falta de assunto. Antes, o problema é o excesso. Vivemos uma época de superabundância factual, como já afirmou o antropólogo francês Marc Augé. Além da história – que não para nem acaba nunca –, temos a elevação de tudo à condição de grandiosidade. Música, literatura, cinema, passeios ao léu, receitas gastronômicas, brigas de rua, vacina hipotética, governos estúpidos, cidadãos perdidos, cachorros que latem, nada escapa à letra do cronista. Escrever é, antes de tudo, decidir para onde olhar.

Há dias, no entanto, que amanhecemos cegos. Nada estimula ideias. O teclado do computador parece estar em brasas. É impossível redigir mais do que duas ou três frases antes de atacar o cursor e encarar a tela em branco novamente. Quem já precisou escrever um texto (trabalhos escolares, artigos científicos, colunas de jornal, contos, novelas ou romances) entende o que estou afirmando: não ter as palavras ansiadas à ponta dos dedos é um tipo muito peculiar de fim do mundo.

Na maior parte do tempo, o desespero é “recortar” a realidade. Como abordar a “guerra cultural” em torno de uma vacina que ainda nem existe? Como adjetivar indivíduos que creem em conspirações comunistas, na decência de Trump ou nas tentativas de armar a população até os dentes? Se deixarmos a imaginação voar, tudo que parece verdadeiro logo se tornará uma fabulosa peça de ficção científica. No apagas das luzes, prevalecerá o absurdo.

Vira e mexe fantasio que estou enviando um e-mail para a redação do jornal, expressando em letras garrafais: “HOJE NÃO TEM COLUNA!” E, no caso de alguma audaciosa réplica, eu me vislumbro argumentando que o mundo está ficando muito chato, apesar de ser redondo; que os políticos estão me deixando doente das ideias; que a minha lua em Júpiter se chocou com “Peixes” no mapa astral dos infernos. Honestamente, eu não gostaria de envolver ninguém em minhas crises existenciais.

Mas e a coluna? Sobre o que escrever? Divórcio de famosos? Novos sintomas observados em pacientes com Covid-19? As candidaturas “exóticas” das eleições municipais? A eterna crise na educação, na ciência, na saúde? Mais um vexame presidencial? Outro ministro que inventa doutorado? Não sei. O caráter fértil da realidade tem se revelado extremamente canalha ultimamente.

Acho que não vai haver coluna, não. Sim. Está decidido. Hoje não tem coluna. Volto semana que vem.

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