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Marco Rossi - A Cidade Futura 5m de leitura

Há uma tela no meio do caminho

ATUALIZAÇÃO
05 de agosto de 2020

Marco A. Rossi
AUTOR

Ambientes virtuais favorecem animosidades. Aquilo que não se tem coragem de dizer cara a cara é facilmente proferido numa rede social. Uma ilusória proteção oferece falsa coragem a verdadeiros covardes, corrompendo o debate público e privatizando o mundo das ideias.

 

Existe um importante papel das mediações na transmissão da informação e na elaboração do conhecimento. Sem um crivo analítico capaz de separar o fato ocorrido da opinião desmedida, o que chega ao leitor (ouvinte ou telespectador, tanto faz) pode ser uma mistura bastante infeliz de revanchismo, ódio e ideologização absurda da vida. A realidade é transformada em arena, na qual há torcidas, em vez de cidadãos.

“Cidadão, não!”, disse uma senhorita a um fiscal municipal no Rio de Janeiro. Ela preferiu destacar a profissão do companheiro, a opção particular, em vez de assumir e enaltecer sua condição comum. A aversão à cidadania é simultânea ao gosto pelo privilégio. A hipercompetitividade das sociedades capitalistas estabelece o desejável: ser melhor do que os outros, ainda que isso, de fato, raramente se concretize ou seja possível somente por meio da corrosão do caráter.

Na raiz do problema, talvez esteja o excesso de positividade exigida de cada um, o tempo inteiro. É proibido demonstrar sentimentos, admitir fraquezas e expressar desconhecimento. Em vez da negatividade que humaniza indivíduos em eterna construção, o destaque dado é para o universo da motivação, do “você é o empreendedor de si mesmo”, do “você é do tamanho dos seus sonhos”. Não há meritocracia em sociedades que se alimentam da desigualdade, do preconceito, de histórias interrompidas por violência e descaso. No mundo virtual, a realidade é ficção e a ficção, uma realidade de coaches.

A pandemia do coronavírus ampliou as fronteiras do mundo virtual. Com ruas e praças ainda mais esvaziadas, o lugar físico da política se deslocou para o espaço abstrato das conectividades. Política em sentido dilatado, é preciso ressaltar. A educação dos filhos, as trocas amorosas, as visitas familiares, o consumo cultural, as viagens pelo mundo, tudo agora tem uma tela no meio do caminho. Há uma tela no meio do caminho, constataria o grande poeta.

Com “quadradinhos” alocando gente, fones recebendo sons, cliques e conexões nem sempre confiáveis promovendo as aproximações possíveis, a internet é agora o lugar de estudar, namorar, matar saudade. Ao mesmo tempo – e lamentavelmente –, pode se traduzir num terreno de fofocas, conspirações e “cancelamentos”.

Sem que as pessoas sejam diferentes, os meios irão reforçar apenas aquilo que elas têm sido. Não é razoável esperar que o mundo virtual humanize, fortaleça ou mesmo empreste alguma dignidade aos indivíduos. Eles terão à frente de si, em vez de uma tela para o mundo, um espelho feito de vaidade e egoísmo. Tela e pedra se fundem e se põem no caminho, declamaria o bom poeta.

Mas o poeta adverte: as caminhadas sob o sol, os beijos e abraços à luz do luar e os sonhos compartilhados à beira mar logo trarão a humanidade de volta à sua longa aventura em busca de si mesma. Haverá – de novo – uma esperança no meio do caminho.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL

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