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A CIDADE FUTURA 5m de leitura

Eles, nada gatos, já nasceram pobres

Todos recortamos a realidade e percebemos só uma ínfima parte da vida; algumas falas vestem as carapuças de todo mundo

ATUALIZAÇÃO
20 de junho de 2023

Marco A. Rossi
AUTOR

Imagem ilustrativa da imagem Eles, nada gatos, já nasceram pobres

Eles, nada gatos, já nasceram pobres

Já é parte do melhor da vida brasileira o momento em que o jurista e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), José Geraldo de Souza Junior, explica a uma deputada bolsonarista, durante reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a impossibilidade de existir um diálogo profícuo entre eles.

A questão, destacou o professor, era de cosmovisão. A deputada só poderia enxergar aquilo que seu processo cognitivo permitisse, uma vez que as crenças dela em relação ao fenômeno investigado possuíam certezas indeléveis. De certa maneira, a realidade já estaria inscrita na cognição da jovem deputada. Ela não seria capaz de ver o mundo inteiro, mas tão somente a parte que sua cabeça havia recortado. Se ele lhe dissesse alguma coisa que confrontasse essa percepção estabelecida da realidade, seria logo rechaçada. Daí a inviabilidade de um diálogo frutífero.

A parlamentar de extrema direita, atordoada, acusou o professor de tê-la ofendido, de “tirar onda” da CPI numa linguagem com “estilo acadêmico”. A cena virou um amontoado de memes de internet e revelou, sem deixar margem para muitas dúvidas, a falência cognitiva do viés da vida política a que pertence a representante do povo catarinense.

Antes de mais nada, é preciso que se diga: a fala de José Geraldo de Souza Junior veste todas as carapuças do mundo. Todos recortamos a realidade e percebemos só uma ínfima parte da vida. Como ensinou o filósofo húngaro György Lukács, o fenômeno objetivo é muito maior que a disposição subjetiva de compreendê-lo – a complexidade da vida é inesgotável e não se encerra em nenhuma explicação.

Nesse sentido, não houve ofensa nem tiração de sarro por parte do jurista convidado pela CPI. Houve, sim, a lembrança de que algumas cosmopercepções podem ser mais abrangentes do que outras. Na hora de recortar a realidade, entra em campo todo um percurso de historicização, como recordou o professor. De que lado estamos? Que princípios nos orientam? Quais valores cultivamos? O que devoramos em termos éticos e estéticos? A resposta a essas indagações diz muito sobre o “tamanho” de nossas visões de mundo.

A pedido de uma colega de profissão, pesquisadora das novas direitas no Brasil, percorri perfis de conservadores, reacionários e bolsonaristas locais e nacionais nas redes sociais. A imagem que de lá avança sobre qualquer observador é apavorante: apologia às armas, negacionismo científico, mentiras, má-fé, defesa de toda sorte de preconceitos e práticas abertas de intolerância e comovente estultice. A chave estética salta aos olhos: raramente se indica ou analisa uma peça de cultura; quando isso ocorre, é para acusá-la de “comunista”, “depravada”, “esquerdista”, essas bobagens. A pobreza de espírito é acachapante.

Hora dessas, retorno aqui para esmiuçar o que “pensam” sobre o italiano Antonio Gramsci, cuja obra eu estudo há mais de vinte anos. Por ora, basta afirmar que essa gente não consegue ultrapassar sua indelicada estreiteza cognitiva. Uma paisagem infernal.

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