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A CIDADE FUTURA 5m de leitura

Como será a primavera?

Que a quarentena nos ensine a dançar sozinhos, sonhando com a canção perdida, o amor nunca vivido

ATUALIZAÇÃO
25 de março de 2020

Marco A. Rossi
AUTOR

O paradoxo rege a história. Atitudes descabidas ganham sentido em contextos imprevisíveis. Quem poderia imaginar que, numa época de expansão dos domínios científicos, a humanidade teria de se isolar para conter a destrutividade de um vírus? Ao mesmo tempo, quem é capaz de supor que existam pessoas que contrariam a ciência e apostam nas exigências desumanas do vil metal? Em meio à quarentena – necessária para impedir o colapso dos sistemas de saúde e a corrosão das redes de sociabilidade –, insanos em defesa dos “negócios” gravam vídeos em suas casas, longe de todos, para declarar que tudo deve voltar ao “normal”. 

 

Não devemos desejar o retorno à normalidade. Foi a vida “normal” que nos trouxe a este delicado instante. A hipercompetitividade generalizada, a indiferença pelo outro, o desprezo pela natureza, a idolatria pelos objetos de consumo, a corrida pelo status, a sanha do poder, o hedonismo inumano, tudo cria e fortalece o paradoxo dos paradoxos: para nos tornarmos humanos teremos de admitir à desumanização, escapar-lhe às agruras, para alcançar uma nova ideia de civilização. 

Já sem abraços, beijos e cafunés, temos tempo para pensar naquilo que estávamos nos tornando antes da primeira noite do medo. O que estávamos fazendo com as nossas vidas? O que nos orientava e inspirava? Para além do dinheiro e das formas de tê-lo em maior quantidade, com o que sonhávamos? É de imaginar que, após longo outono e solitário inverno, a primavera nos apresente à nossa perdida imagem invertida – aquela que escondia de nós mesmos o que poderíamos ter sido, caso tivéssemos negado essa atual versão tão apequenada, egoísta, ignorante... 

É possível que, isolados e assustados, busquemos a grandeza num livro que não lemos por preguiça ou falta de tempo. É também de supor que existirá disposição para pensar a vastidão do mundo, seus recantos, mares, belezas – um mapa-múndi se fixará em nossa memória, permitindo viagens diárias pela Terra que abandonamos por causa do microuniverso de nossas particularidades mais hostis. Nossa imaginação dará um salto de qualidade: criaremos novas histórias, nas quais mocinhos não existem, bandidos não se lhe opõem, tudo vive junto e misturado, no insuperável elemento contraditório da vida. Seremos, com a chegada das flores, menos binários, mais complexos, vulneráveis à felicidade. E poderemos declamar as poesias que ignorávamos por total insensibilidade. 

Que a quarentena nos ensine a dançar sozinhos, sonhando com a canção perdida, o amor nunca vivido. Que o tempo de sobra estimule alguns acordes no velho violão encostado a uma parede da casa. Na próxima primavera, assim, poderemos compor e tocar com os amigos; deveremos antecipar aquele convite à pessoa amada para jantar, bailar com os rostos colados. Se nada mais houver, o ser humano terá regressado, exausto, após séculos de uma longa viagem por outras e distantes realidades. 

Quase tudo está em jogo neste paradoxo: o outono das angústias e o inverno do horror (estações aliadas da economia do capital) ou a primavera da esperança e o verão das grandes paixões (o tempo do despertar humano). A escolha feita definirá o que o futuro entenderá por “civilização”. 

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – cidadefutura@folhadelondrina.com.br 

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