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A CIDADE FUTURA 5m de leitura

A alegoria de Pindorama

ATUALIZAÇÃO
24 de junho de 2020

Marco A. Rossi
AUTOR

“Pindorama” é uma alegoria. Trata-se do modo como o outro vê o Brasil, um outro que pode estar dentro ou fora, mas não é considerado “real”. Nesse sentido, “Pindorama” é a escrita do “não ser” nacional, que intui simbolizar sua própria imagem no espelho. Uma alegoria do Brasil, portanto, tem de dizer alguma coisa sobre esse enorme, estranho e às vezes desalmado território, com seus muitos povos, costumes, leis e histórias. 

 

O Brasil poderia ser uma biblioteca? Poderíamos percorrer a história do país nos corredores e saguões desse monumento cultural imprescindível? “Pindorama”, naquilo que tem de bom e ruim, seria bem alegorizada numa partida de futebol? O êxtase da partida, a emoção dos atletas, a vitória perseguida, a derrota anunciada, essas coisas, enfim, fariam alguém ver o Brasil sem ter de confrontá-lo nua e cruamente? Depende da imagem do Brasil que interiorizamos. 

O Brasil, hoje, optou por ser, efetivamente, uma alegoria corrompida. As cores verde e amarela, por exemplo, em vez de representarem a bandeira, recordam gente pouco sã, que se reúne em bandos, mente, grita, atira e, depois, se faz de vítima. (Usar as outras cores da bandeira, o branco e o azul, não redimirá ninguém.) 

“A culpa é do PT”, dizem os mais exaltados. É comum que essas mesmas peças da “alegoria reversa” – um país que decidiu se vestir do avesso e, ainda assim, só ser compreensível por meio de criativas engenharias literárias – mandem seus críticos para Cuba, Venezuela ou Coreia do Norte. Esses países, aliás, seriam o “não outro” da alegoria Brasil. O problema é que, se interrogados, os verde-amarelos talvez nem saibam onde ficam essas nações. O amaldiçoado “vírus chinês” e a redentora cloroquina sequestram tanto a serenidade quanto a urgente radicalidade do pensamento. Toda alegoria que não diz nada sobre aquilo que pretende representar, poética ou melancolicamente, é estúpida. 

Uma boa escrita alegórica do Brasil contemporâneo seria muito bem ambientada no inferno. Lá, a despeito dos anjos residentes, nada é o que parece ser. Pior: nada permite ser chamado por aquilo que de fato é. Assim, na alegoria infernal do maior país da América Latina não existem governos de milicianos e o racismo é coisa impensável, assim como o machismo e a homofobia. 

Não há fascistas no Brasil infernal. Só comunistas, esses tipos perigosos que querem dominar o mundo através do Foro de São Paulo, da “classe” artística, da extrema-imprensa e das universidades, o antro do “marxismo cultural”. O câncer do Brasil infernal, aliás, é o esquerdismo. O regente infernal (inteligente que só ele) promete uma cura para esse mal, tão logo explique as mentiras de uma república de parentes e a atuação clandestina de seu gabinete do ódio tão particular. 

Walter Benjamin escreveu que, se os inimigos vencerem, nem os mortos estarão a salvo. E concluiu, um pouco desesperançado, que os inimigos nunca deixaram de vencer. “Pindorama” – essa nação de indígenas, negros e povos subalternizados que jamais viram estátuas – pode, agora, puxar a corda daqueles que sempre venceram, denunciando como e por que se saem vitoriosos no inferno que tão bem representam. 

A alegoria do futuro será um domingo ensolarado na praia, em que a vida será festejada por gente de todas as cores e expressões do desejo. 

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – cidadefutura@folhadelondrina.com.br

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