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CÉLIA MUSILLI 5m de leitura

Uma livraria de corpo e alma

ATUALIZAÇÃO
02 de maio de 2020

Celia Musilli - Grupo Folha
AUTOR

Há décadas, a City Lights Bookstore é a livraria mais famosa de São Francisco (Califórnia). Pelos seus três andares ecoam as vozes de gerações de escritores dos EUA e de todo mundo. Ecoam, principalmente, as vozes da geração beat, de Allen Ginsberg, Jack Kerouac e outros expoentes.

No mês de março, os fãs da livraria criada por Lawrence Ferlinghetti em 1953 foram sobressaltados pela notícia de que o local - depois de passar por revoluções culturais, guerrilhas e censuras - poderia ser fechado pela crise financeira detonada pela pandemia do coronavírus.

Na ocasião, os donos da loja, Ferlinghetti e Nancy J. Peters, enviaram os funcionários para casa respeitando seus direitos trabalhistas e sua saúde, mas sem as vendas, com as portas fechadas, descobriram como tantos comerciantes que a livraria não resistiria à crise.

Então foi lançado um crowdfunding para arrecadar US$ 300 mil para manter as contas em dia e a livraria fechada pelo tempo necessário.

Manter aberta a meca da geração beat passou a ser meta de milhares de colaboradores do mundo inteiro que doaram quantias grandes ou pequenas para manter aquele espaço que, desde a sua inauguração, é mais que uma loja que vende livros, é um espaço cultural que mantém inclusive uma fundação, sem fins lucrativos, dedicada ao combate do analfabetismo e ao incentivo à leitura.

O desejo de Ferlinghetti, que completou 102 anos em março, era criar um local que acolhesse e representasse o transe e o trânsito da contracultura, efervescente nos anos 1950. Ele conseguiu e a livraria, ainda hoje, carrega um espírito livre que seduz leitores e autores.

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Em 1956, Ferlinghetti publicou o poema Uivo (Howl), de Allen Ginsberg, na coleção “Uivo e Outros Poemas.” No Brasil, o poema foi traduzido por outro poeta: Claudio Willer que,em 1984, teve sua tradução publicada pela L&PM. A tradução, muito elogiada na imprensa nacional por revelar o espírito beat em todo seu potencial, incluindo notas explicativas, ganhou depois outras edições.

Recebi da jornalista londrinense Mara Sallai, que mora nos EUA, informações sobre o crowdfunding da City Lights Books que já arrecadou quase US$ 500 mil, ultrapassando a meta inicial. Isso significa que a livraria foi salva da pandemia que não mata apenas pessoas. Se conto essa história é porque me preocupo, neste momento, com a cultura brasileira, tão maltratada e sem recursos. Aqui, como em qualquer lugar do mundo, livrarias também estão fechando as portas e temo por elas, como temo pelos sebos de São Paulo, Rio, Curitiba ou Londrina. Temo pelos pequenos livreiros de porta única e se cito o exemplo da City Lights é com a esperança de podermos também salvar, com atos de solidariedade, escritores, livreiros, editores – e, por que não? - leitores.

Formamos leitores através de gerações. Ninguém nasce leitor, mas torna-se um. Isso só acontece se nossos emblemas culturais – como as pequenas e médias livrarias e não só as mega stores – puderem se manter em tempos difíceis, graças àqueles que amam os livros. Não apenas os livros, mas o corpo e a alma da literatura representados por eles. Campanhas de solidariedade e arrecadação de fundos são necessárias e bem-vindas.

A City Lights mantem-se há 67 anos como uma livraria de bairro, onde o visitante pode até mesmo conhecer “o quarto do poeta”, um cômodo onde ficam apenas livros de poesia. Isso é o que se chama de um “negócio que não perdeu a alma”.

A livraria que foi criada para acolher e representar a contracultura – reunindo escritores, leitores, boêmios, bêbados e artistas – tem decoração vintage, três andares lotados de prateleiras e ainda coloca nas janelas letreiros com apelos que fazem dela um espaço afetivo. Cartazes com frases como Open Book, Open Heart, Open Mind indicam que a literatura é dedicada a corações e mentes sempre abertas. E também a livrarias que nunca fecham, graças à solidariedade e ao amor aos livros  

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