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PONTO DE VISTA 5m de leitura

Estamos vivendo Matrix?

A pergunta que se coloca é se as tecnologias sedutoras vão nos encaminhar para um mundo melhor ou tudo se resume a um simulacro com as mesmas desigualdades

ATUALIZAÇÃO
19 de dezembro de 2021

Celia Musilli - Editora
AUTOR

Faltando poucos dias para a estreia de "Matrix Resurrections" (2021) nos cinemas brasileiros, o duplo personagem de Keanu Reeves, Thomas Anderson / Neo, nos dá uma pista sobre o mundo da inteligência artificial e das realidades virtuais. A ideia de uma "caixa" onde a humanidade simula uma realidade, sem um pensamento crítico, não é nova. Platão  enfocou a ideia em "O Mito da Caverna" muito tempo antes de acharmos uma beleza viver a realidade em 3D.

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Na caverna de Platão tudo o que as pessoas viam eram as sombras projetadas num mundo interior sem conhecimento do que acontecia fora, na realidade de fato. Isso é a alegoria de uma humanidade que perdeu o percepção e o senso crítico.

Impossível não fazer associações filosóficas ou mesmo não se lembrar de Matrix quando o big boss das  empresas de tecnologia , Mark Zuckerberg, anuncia o Metaverso e põe boa parte do mundo de quatro.

A criação de uma realidade virtual que as pessoas vivem cada vez mais como a única realidade,  de certa forma nos devolve à caverna de Platão. Não podemos deixar de pensar que estamos diante das telas , mas que todos os nossos sentidos precisam de uma percepção mais ampla de como as coisas funcionam fora da caixa. 

A ideia do Metaverso proposta por Zuckerberg é sedutora, mas não é nova. Tão logo foi anunciada, pesquisadores  invocaram as  origens desse "futuro da internet". Pra começar, o Metaverso não é uma criação do Facebook. Sua origem está no livro de ficção científica  "Snow Crash" (1992) , de Neal Stephenson. No enredo, o metaverso é um espaço virtual em 3D, cheio de avatares que interagem em diversos tipos de experiências.

Há pelo menos 18 anos também surgia a Second Life, um jogo, um espaço virtual criado pelo estúdio americano Linden Lab para ser aquilo que o próprio nome projeta: uma segunda vida e embora grandes marcas tenham investido em lojas virtuais dentro desse novo universo, a SL não decolou no 'mainstream', embora exista até hoje limitada a uma bolha virtual, entre tantas. 

Mas o motivo desse artigo não é apontar as semelhanças entre mundos paralelos, é questionar as novidades  sedutoras que constroem um mundo novo em meio a velhas desigualdades, trata-se da mais dura realidade, sem simulações. A pergunta que se coloca é se além de alavancar negócios e mercados, o Metaverso que vai em certa medida roubar nossa identidade - nos condicionando a ser avatares em experiências diversificadas - servirá a alguma coisa para além da maquinaria de algoritmos, modelo seguido hoje pelos negócios que simulam mundos e fundos, na acepção da palavra. Hoje, criamos, compramos e absorvemos conteúdos alavancados por algoritmos, um mundo de robôs capazes de vender imagens, produtos e até ganhar eleições presidenciais à base de simulacros.

O que se coloca não é contrário aos horizontes ampliados pela tecnologia que melhora nossas vidas em tarefas simples, como a das operações  bancárias ou os exames complicados que escaneiam com precisão nossa saúde. O que se questiona é em que medida o nosso modelo social está tão avançado quanto nosso modelo virtual. 

No Brasil, na fase aguda da pandemia, tivemos a certeza de que a educação pública estava a anos-luz da tecnologia que nos deslumbra. Aqui mesmo no Paraná, alunos sem internet receberam nas porteiras da zona rural o conteúdo escolar das mãos de professores abnegados. A vida não pode ser uma virtualidade expandida, instalada na precariedade dos países pobres. Nesses mundos precários,  a realidade em 3D terá utilidade limitada a um nicho de felizes compradores para implementar o mercado gerando lucro para os mesmos donos do mundo. 

Monitorados por plataformas e redes que manipulam nossos desejos nos levando a mercadorias que a cada três minutos aparecem em nossas telinhas, já temos nossa privacidade devassada, a ponto do mercado saber se usamos calcinhas de algodão, se fomos ao cinema ou se preferimos comida chinesa. E todo esse monitoramento é naturalizado num universo que, na contrapartida, oferece bem pouco ao invadir nossa privacidade, nossa liberdade e, agora, nossa identidade. O que falta é ética!

Como diz meu filho Gustavo Galvão, 25 anos, estudante de Ciências Sociais, com quem reflito aqui em casa: "O que está em pauta é se este espaço será de circulação livre de informações - como se propunha desde a invenção da internet e das redes - se  servirá de estímulo ao desenvolvimento humano, se conseguiremos, a partir dessas novas ferramentas fantásticas, transformar o mundo para melhor, ou se este espaço é simplesmente mais um local de reprodução das desigualdades." 

Incorporar um avatar pode parecer sedutor, mas a realidade não é um jogo, nem uma simulação onde  tudo se resume a enviar uma meta identidade para uma reunião maçante participando virtualmente daquilo que é muito chato no corpo a corpo. Aliás, penso que um dia sentiremos falta do corpo a corpo, do olho no olho, da criatividade fora do mundo das NFTs e da arte incorporada aos simulacros. Porque tudo isso  se reveste fortemente de oferta e procura, compra e venda, produto e grana.

Seduzidos por óculos 3D e nos sentindo engajados ao admirável mundo novo, não podemos ter apenas um olhar virtual sobre a realidade que se desenha  catapultando nossos desejos por algoritmos, numa vivência mediada por impulsos artificiais numa cultura de algoritmos, jornalismo de algoritmos, arte de algoritmos, enfim, relações de algoritmos.   A  tecnologia é bem-vinda desde que não se perca de vista a humanização dos processos básicos de sobrevivência da espécie. Os superpoderes da tecnologia ainda exigem um olhar sobre Platão ou seremos devolvidos às sombras nas paredes da caverna.

 
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