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Reportagem 5m de leitura

Na miséria, risco à saúde fica em segundo plano

Para moradores de áreas de extrema pobreza, não ter comida no prato é problema maior que avanço da Covid-19

ATUALIZAÇÃO
20 de abril de 2020

Vitor Struck - Grupo Folha
AUTOR

 

A primeira impressão sobre as condições de vida dos habitantes de uma localidade pode ser a que fica. E se a opinião for dada por uma antiga moradora, então, torna-se “lei” para quem visita a comunidade e logo comprova que onde falta o estado, sobra o "improviso" para a superação das dificuldades. “Meu filho, a maioria aqui trabalha cedo pra comer à tarde”, diz uma moradora que pediu para não ser identificada, mas fez questão de verbalizar o que os olhos já gritavam. 

Em busca de relatar o impacto dos últimos acontecimentos na vida da população mais pobre de Londrina, a FOLHA traz uma reportagem especial em que mostra a realidade de moradores de dois bairros cuja população se encontra em situação de vulnerabilidade social. Enquanto a Prefeitura anuncia a reabertura gradual do comércio, os relatos de quem vive no limite das piores condições sanitárias e financeiras pode reduzir um sério problema global ao patamar de uma "gripezinha", mas escancara a verdadeiro importância de se colocar em prática medidas de segurança especialmente quando se cogita uma possível contaminação em massa por Covid-19 na periferia.

"É triste a realidade, estamos esquecidos aqui", lamenta Márcia Nogueira
 

O convívio com doenças crônicas somado ao risco de morar em uma residência ainda inacabada que pode ser levada a qualquer momento pela força do vento ou de uma enxurrada, situação da dona de casa Márcia Nogueira, 38, é um exemplo da dimensão dos problemas que já existiam bem antes da pandemia de coronavírus. Outra situação complicada é a de quem veio de fora em busca de emprego, como o catador de materiais recicláveis José Aparecido da Silva, 57, e agora vê as perspectivas se fecharem ainda mais com uma nova e iminente onda de recessão econômica.      

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Em uma das ruas acidentadas em que cerca de 250 famílias ergueram suas casas ao longo dos anos, no Jardim Marieta, zona norte, a diarista Ana Cristina Silva Teixeira, 27, logo confirma a opinião da vizinha citada na abertura desta reportagem.  

A jovem trabalha para quatro famílias, mas nas últimas três semanas só pôde fazer uma faxina. Com a renda 80% menor, o sonho de reformar a casa em que vive com o marido e trazer mais conforto ao filho David, 3, foi o primeiro plano a desaparecer no horizonte de uma quarentena. “Eu ia rebocar a parte de dentro, agora parou tudo, não entra mais dinheiro. É difícil né, pelo jeito vai demorar. Agora como a creche está fechada não tem nem como sair. Ele ia na escola, agora só em casa”, lamenta.   

Situação parecida vive a vizinha Fernanda Bezerra, 32. Viúva e mãe de seis filhos, a jovem moradora costumava fazer, em média, quatro faxinas por semana, o suficiente para passar o mês com cerca de R$ 1.200, além da complementação do programa Bolsa Família. “A gente espera que amanheça o dia com uma boa notícia”, diz em alusão ao depósito do auxílio emergencial de R$ 600 anunciado pelo governo federal, mas que ainda não havia chegado, pelo menos até a tarde desta quinta-feira (16).   

 

Mesmo com todas as dificuldades, a jovem comemora o fato de estar passando mais tempo com os filhos e ter se tornado “professora” particular de uma “turma” inquieta. “Eu tô dando aula para eles de manhã, que começou pela internet, mas graças a Deus eu tenho um celular, tem mãe que não tem, aí os filhos ficam jogados. Estou ficando meio nervosa, mas por enquanto está dando”, conta.    

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Nem mesmo acompanhar o crescimento dos filhos dos outros mais de perto está sendo possível para a  pastora Sônia Nogueira dos Santos, que decidiu suspender as atividades do Projeto Evangelização do Menor "O Senhor é a Paz". No encontros semanais com direito a um lanche, pelo menos 26 crianças e adolescentes que moram na ocupação entravam em contato com a espiritualidade dos mais velhos enquanto dedicavam-se à música e ao teatro. "Não seria prudente continuar", disse a pastora como forma de dar um bom exemplo aos mais novos e evitar aglomerações.   

 

Em Londrina, três em cada dez moradores vivem em situação de pobreza e quase 25% da população de até 14 anos pertence a uma família com renda menor do que meio salário mínimo, aponta a publicação "Cenário da Infância e Adolescência no Brasil", da Fundação Abrinq. Neste contexto, a preocupação em contrair um novo vírus fica explícita somente em conversas mais demoradas.

No portão de casa, em quem topou falar rapidamente com a reportagem transparecia mesmo a velha angústia trazida com a urgência de se ter o alimento à mesa todos os dias. Dúvidas sobre a gravidade da Covid-19 para a saúde também foram mencionadas, mas não com a mesma intensidade das preocupações sobre a incertezas econômicas que guardam os próximos meses.  

 

Foi assim com a esposa do catador de materiais recicláveis e morador do Jardim União da Vitória, José Aparecido da Silva, 57, que, mesmo sendo diabética, ainda tinha “esperanças” de que o coronavírus não fosse tão "grave quanto dizem as notícias". A família é uma das 55 que moram em uma das seis unidades do União da Vitória e que puderam contar com doações de cestas básicas nas últimas semanas.  

De acordo com a irmã Maria José Picart, 73, moradora há dez anos na região, um grupo destinou 70 cestas básicas e todas já foram encaminhadas. Para a manhã deste sábado (18), um bazar seria preparado para ajudar a gerar renda para projetos como o da Casa Coração de Mãe, no União da Vitória 5, onde recebe cerca de 50 mulheres e cobra o compromisso de “aprenderem alguma atividade”.   

 

“Estou observando que aumentou o número de famílias que pedem cestas. E eu também sempre falo para elas que Deus ajuda, mas que nós temos que fazer a nossa parte”, faz questão de ressaltar.  

Mesmo com o retorno das atividades da construção civil já autorizado, o auxiliar de pedreiro Adalberto Balbino dos Santos, 38, ainda não sabe quando poderá retomar o trabalho que lhe rende cerca de R$ 80 por dia. Com a mãe internada no Hospital Evangélico aguardando doações de sangue, não há tempo e energia para pensar no risco de contrair o coronavírus. O morador também demonstrou preocupação com a queda no volume de doações de sangue desde a chegada da doença.   

 

Uma situação que só não é mais drástica do que a de Márcia Nogueira, 38. Para quem já encarou doenças como tuberculose e pneumonia, uma pandemia mundial de coronavírus não apavora tanto quanto os efeitos da "quarentena" afetiva e social que já enfrenta. "É triste a realidade, estamos esquecidos aqui", lamenta.

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