A prisão do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro pode ter sido um episódio corriqueiro para boa parte da população, afinal, políticos envolvidos em casos de corrupção e recolhidos à cela deixaram de ser novidade nos últimos anos no país. Mas merece destaque, no escândalo em questão, a forma como começaram as investigações: tudo só ocorreu após uma reportagem do jornal O Estado de S.Paulo, revelando a existência de um gabinete paralelo no MEC (Ministério da Educação), que envolvia pastores cobrando propina até em barras de ouro. O que veio após ainda repercute, diariamente, em toda a imprensa e ressalta a importância do jornalismo investigativo no Brasil.

Imagem ilustrativa da imagem A força do jornalismo investigativo
| Foto: Gustavo Padial/Folha Arte

“Há uma diferença entre jornalismo de investigação e investigativo. O de investigação é quando há uma investigação em curso, uma fonte revela algo dito em uma delação e isso gera notícia, por exemplo. Já o investigativo é o que parte da essência jornalística. Partiu da imprensa, não havia uma investigação, foram jornalistas que descobriram, apuraram, puxaram os fios. E é fundamental esse trabalho, é nosso papel fazer essa fiscalização de órgãos públicos, o cuidado com os direitos humanos. Aceitar as respostas iniciais muitas vezes não dá”, explica a jornalista Katia Brembatti, vice-presidente da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e vencedora do Grande Prêmio Esso e dos prêmios Tim Lopes de Jornalismo Investigativo/Embratel, Ipys de reportagem investigativa da América Latina e Global Shining Light Award, pela série “Diários Secretos”, da Gazeta do Povo, que escancarou um esquema de corrupção na Alep (Assembleia Legislativa do Paraná), em 2010.

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No trabalho, realizado juntamente com outros três colegas, foram analisados mais de 700 diários oficiais do Legislativo, publicados entre 1998 e 2009, possibilitando a descoberta de 2 mil atos secretos que colocaram 97 funcionários fantasmas na folha de pagamento da Alep. “Como consequência disso, foram economizados mais de R$ 2 bilhões. Imagine quanta coisa foi feita para a população com esse dinheiro”, ressalta, demonstrando o impacto do trabalho.

Outros materiais recentes mostram como a investigação e apuração jornalística, aprofundando e até resgatando temas do passado, tem trazido grandes resultados para a sociedade. Com a série de podcasts “Projeto Humanos”, em que mergulhou no caso do garoto Evandro Ramos Caetano, desaparecido em 1992 e conhecido como o das “Bruxas de Guaratuba”, o jornalista Ivan Mizanzuk revelou fitas de áudio, até então desconhecidas, que comprovaram a tortura dos acusados para que assumissem a culpa pelo desaparecimento da criança. A novidade gerou até um pedido de desculpas formal do governo do Paraná.

Também em áudio, a série “Banco dos Réus”, produzida pela equipe da Folha de Londrina, trouxe luz a cinco crimes emblemáticos e ainda cercados de dúvidas, ocorridos em Londrina. Os assassinatos de Fernanda Estruzani, Cleonice Rosa, Estela Pacheco, Amanda Rossi e Daniela Pergo tiveram grande repercussão não só na cidade, mas em todo o país. Brutais, deixaram uma série de perguntas sem respostas e se arrastam até hoje nos tribunais. A primeira temporada, disponível nas plataformas de streaming de áudio, teve seu último episódio lançado na quinta-feira (31).

“Os jornalistas são profissionais da análise de situações que usam seu conhecimento de mundo e estudam a sociedade em suas diversas áreas para poder entender os fatos que vão narrar. A investigação vem dessa veia de inconformismo com o fato apresentado raso, que leva o profissional a ir além, a ligar para mais uma pessoa, a falar com outra de opinião oposta, de ler artigos publicados, dados públicos, ouvir testemunhas e tirar outras conclusões para chegar mais próximo da verdade. O produto jornalístico que nasce disso, seja um livro-reportagem, um documentário, uma reportagem investigativa ou um podcast, ganha o nobre status de arte, porque é genuíno e visceral”, argumenta a jornalista Patrícia Maria Alves, líder do projeto e editora-gerente de produtos digitais da Folha de Londrina.

“O jornalismo investigativo nunca foi tão importante. Claro que vivemos momentos tensos no passado, na época da ditadura fazer jornalismo era difícil, mas muitas coisas, mesmo hoje, se a imprensa não produz e revela, a sociedade não fica sabendo. Temos atualmente múltiplos produtores de conteúdo, graças à tecnologia, mas a imprensa tem uma apuração técnica, uma forma profissional de fazer e que esses produtores não conseguem replicar, não seguem esses parâmetros para se alcançar conteúdos aprofundados”, avalia Brembatti, que elogia iniciativas como a da série “Banco dos Réus”, de se retomar casos do passado. “Não é porque aconteceu há 30 anos que não se pode ter fatos novos. São episódios cercados de dúvidas e a imprensa está correta quando acompanha um caso por muito tempo. São diversas as situações em que a imprensa revisita um fato e traz novidades”, complementa a vice-presidente da Abraji.

Mas, em uma sociedade imersa em notícias falsas e cada vez mais hostil ao trabalho jornalístico, seguir em frente tem seus desafios. “A gente tem um aumento de violência contra jornalistas, agressões físicas, perseguição. O caso do Dom Philips, morto na Amazônia, mostra que a gente não deveria normalizar que um jornalista estar lá seria perigoso. E quando há esse vácuo do Estado, quando a gente vai banalizando que há áreas em que um jornalista não pode ir, é uma situação complicada. Antigamente, só quem cobria uma guerra ou assuntos relacionados ao narcotráfico, por exemplo, corria riscos. Hoje, registrar uma manifestação é perigoso. Nas aulas do curso de Jornalismo eu vejo os alunos interessados no trabalho jornalístico, mas me preocupa o medo das famílias, já que muitas não querem ver seus filhos em situações de perigo. É compreensível, mas nós vamos ter uma consequência disso se muitos deixarem de fazer jornalismo no futuro. E não existe democracia sem imprensa”, pondera Brembatti, que também é professora universitária.

Como antídoto, a vice-presidente da Abraji sugere informar mais a população, que pode assim sair em defesa do Jornalismo. “No caso dos ‘Diários Secretos’, uma das consequências foi a economia de mais de R$ 2 bilhões. Será que a sociedade sabe disso? Temos que reconhecer que a gente não torna muito claro para a população como esse trabalho é importante para a vida dela. Quando a imprensa acompanha o gasto público e por isso tem médico no posto de saúde, uma consequência boa veio disso, mas as pessoas não ficam sabendo. Falta informar isso”, sugere Brembatti.

Para Alves, é preciso ter coragem. “Enquanto eu apurava fatos e lidava com as angústias da investigação jornalística para o ‘Banco dos Réus’, eu li um livro do Marinósio Filho, escritor soteropolitano que escolheu Londrina para viver, e logo nas primeiras páginas ele escreve: ‘é preciso ter coragem’. Nesse ambiente onde se pressiona o jornalismo para ser cada vez mais rápido, raso, que seja entregue gratuitamente nos aparelhos conectados às mãos das pessoas, a falta de resultados, de leitores, de apoio e de monetização causam frustração. O jornalismo passa a se questionar, com síndrome de impostor, se está fazendo o certo. Mas o jornalismo tem seu tempo. De apurar, de analisar, de concatenar fatos e dados.

‘Estou ajudando a escrever a memória coletiva do nosso país’

Os 23 anos atuando como repórter especial do jornal Tribuna de Minas foram uma grande escola para a jornalista e escritora mineira Daniela Arbex. O jornalismo investigativo já estava na rotina desde os tempos de faculdade – uma das primeiras matérias do jornal laboratório, por exemplo, foi justamente uma denúncia contra um professor do curso de Direito, causando polêmica pelos corredores da Universidade Federal de Juiz de Fora. “Ali percebi a potência da palavra na transformação da realidade. Era uma denúncia vigorosa e foi um marco”, relembra. O trabalho diário como repórter, trazendo luz a fatos nem sempre bem esclarecidos, aprofundou ainda mais o senso de apuração.

“Aprendi que em uma denúncia não basta uma narrativa, é preciso sustentar com documentos. A narrativa muda de acordo com interesses, um entrevistado pode voltar atrás e desdizer o que disse, mas um documento não. Eu precisava sustentar as reportagens e isso me fez me superar, aprender a pesquisar, ler processos e inquéritos. Todas essas dificuldades me fizeram aprender muito”, explica.

Durante uma entrevista com um psiquiatra, teve acesso a fotos de 1961 que mostravam pacientes do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (MG), conhecido como o maior hospício do Brasil. “Fiquei paralisada e fui procurar sobreviventes, 50 anos depois”, revela. Após a publicação de uma série de reportagens, os colegas passaram a sugerir que ela deveria transformar a história em livro. Aceitou quando um editor, apresentado por um amigo, a procurou, mas ressaltou: não poderia ser só aquilo, deveria buscar mais elementos.

“Comecei a apurar de novo, do zero, fiquei um ano fazendo entrevistas, e aí veio o livro”, recorda Arbex. “Holocausto brasileiro” vendeu mais de 200 mil exemplares e foi eleito melhor livro-reportagem do ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (2013) e segundo melhor livro-reportagem no prêmio Jabuti (2014). A obra ainda foi adaptada para documentário pela HBO.

Em 2015, lançou “Cova 312”, vencedor do Prêmio Jabuti na categoria livro-reportagem (2016), em que revela o submundo das prisões da ditadura. Escreveu também “Todo dia a mesma noite”, livro de 2018 que narra a história não contada da boate Kiss. O livro foi tão importante que a Justiça gaúcha o anexou ao processo como documento. “O juiz cita o livro diversas vezes no julgamento. Ali senti que tudo que fiz valeu a pena. Foi um custo emocional muito grande, fiquei dois anos no Rio Grande do Sul trabalhando, ausente de casa. Quando vem esse desfecho, vem junto o sentimento de ‘valeu’. Mudamos a história, não deixamos ficar impune, ajudamos a construir essa memória”, comemora.

Construir a memória do Brasil, aliás, é o grande objetivo da escritora. “Estou ajudando a escrever a memória coletiva do nosso país. Dizem que o Brasil é um país sem memória, mas você não tem memória se você não a escreve. Você enterra a história sem investigar e esquecer é negar a história. Muitas vezes há interesse de que as pessoas esqueçam. Quando você resgata o passado e constrói memória, você abre o caminho para busca de justiça, nem que seja moral”, argumenta.

Eleita a melhor repórter investigativa do Brasil em 2020 pelo Troféu Mulher Imprensa, Arbex tem ainda outros 20 prêmios nacionais e internacionais no currículo, entre eles três prêmios Esso e o americano Knight International Journalism Award. No início do ano lançou “Arrastados”, registro histórico sobre o desastre ambiental e social causado pelo rompimento da barragem de Brumadinho (MG). Todos esses trabalhos, segundo ela, resgatam a credibilidade jornalística.

“Quando comecei a atuar, havia um pacto da sociedade em entender o jornalismo em algo que estava do lado dela. Algo como ‘se a Justiça não deu jeito, o jornalismo vai dar, vai mostrar a verdade’. Hoje vivemos um momento difícil e o jornalismo é visto como inimigo. Então, o jornalismo investigativo nunca foi tão importante nesse momento em que essa guerra de versões suplantou a verdade. A investigação sempre derruba a versão mentirosa. Me assusta perceber que a verdade não importa para algumas pessoas. E esse trabalho está aqui para mostrar que importa, sim. Você dá um recado claro do poder e do papel que o jornalismo tem na busca por justiça. E memória e justiça andam juntas”, pondera.

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