O ano era 1985. No tradicional horário das 18h, na novela “A Gata Comeu”, da Rede Globo, o personagem Fábio, um homem correto, íntegro, pai e professor de crianças, vivido pelo ator Nuno Leal Maia, revidava, sem cerimônia, tapas recebidos de Jô Penteado, a protagonista de Christiane Torloni. A explicação era simples: “bateu, levou”. Em uma das cenas, a bofetada acontece na frente dos alunos. Em outra, ele se justifica: “ela me tira do sério”. A trama ainda dá a entender que Jô se apaixona por Fábio justamente por causa dessa agressividade. Outro personagem, Edson, de José Mayer, não aceitava que a esposa trabalhasse fora. Achava que apenas o homem deveria ser o provedor do lar. Naquela época, foi considerada uma novela despretensiosa, de apelo infanto-juvenil. Tanto é que foi exibida no final da tarde.

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| Foto: Folha Arte

Passados 36 anos, o enredo se mostra absurdo e um remake da novela, com cenas iguais, sequer é cogitado. São outros tempos. Embora tenha feito sucesso em 2017, quando foi reprisada pelo canal Viva, as críticas ao que era considerado normal nos anos 1980 serviram de base para uma discussão dos avanços da luta contra a violência e pelos direitos das mulheres. A mesma reação vem dos comerciais do passado, que colocavam as mulheres na cozinha, na área de serviço ou como objetos.

Uma marca de panos multiuso, por exemplo, considerava-se “o braço direito da dona de casa”, em uma propaganda em que os homens, durante um jantar reunindo dois casais, ficavam na mesa falando sobre vinhos, enquanto as mulheres iam para a cozinha debater os benefícios de se usar os tais “panos furadinhos que agarram a gordura”. Já em outro, de uma loja famosa por vender “de mulher pra mulher”, uma modelo vai se despindo para anunciar a promoção de roupas e lingeries. Com frases como “essas coxas bem torneadas, a cintura fininha, os ombros macios, você vai ver como ele vai esquecer da mulherada da televisão”, a proposta era demonstrar que ao fazer “um strip-tease para seu marido ou namorado”, a mulher descobriria “a força do corpo que possui”. E tudo ia ao ar em horário nobre. Hoje, causaria revolta e cancelamento das marcas – com razão. Mas, na época, fazia até sucesso.

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“Toda obra precisa ser entendida dentro do contexto histórico em que foi criada. Querer apagar algo produzido no passado, com base nas referências atuais da sociedade, é um erro. Pode-se mostrar, claro, com a preocupação de alertar: veja como evoluímos, melhoramos. E entender como uma referência do que não repetir nos dias de hoje”, explica a antropóloga Maria Cristina Neves. Só que nem sempre isso acontece.

Silvio Santos, um dos mais importantes nomes da televisão brasileira, já protagonizou diversas atitudes machistas e desrespeitosas às mulheres, com falas retrógradas e preconceituosas disfarçadas de piada. E isso em pleno século XXI. Alguns episódios ficaram marcados. Um deles envolveu a jovem atriz Maísa Silva, que chegou a chorar e abandonar a gravação. Tempos depois, chamou a apresentadora Fernanda Lima de “magrela, muito magra”. E continuou: “Com ela não tem nem amor, nem sexo. Com essas pernas aí? Nada disso. Quem gosta de osso é cachorro”, fazendo analogia ao nome do seu então programa na Rede Globo, “Amor e Sexo”.

Em outra oportunidade, a vítima foi a apresentadora Lívia Andrade, que teve como alvo a roupa que usava. “Isso é roupa de vir ao programa? Você vem aqui só para me provocar. Você está me provocando com essa roupa. Olha a sua roupa aberta desse lado. Isso é roupa que se vista?”, disse Silvio, que, em seguida, ainda tocou no decote de Lívia. O dono do SBT já foi acusado de racismo também. Durante um quadro musical de seu programa, ele contrariou a votação do auditório, que escolheu como melhor cantora uma mulher negra, e deu o prêmio para outra candidata.

E há exemplos mais próximos. Na última semana, a jornalista e acadêmica de Direito, Gisele Fabbris, levou um susto quando ligou a televisão. Acostumada a deixar em canais educativos, foi surpreendida com um slide de uma aula de Português, produzida pela Secretaria da Educação e do Esporte (SEED) do Paraná, para o 6º ano do Ensino Fundamental. Em uma abordagem que discutia o uso de linguagem figurada e conotativa, por meio de “classificados poéticos”, o material trazia um trecho do livro “Agenda poética”, de Telma Guimarães Castro Andrade, lançado em 1997. Ele diz: “Vende-se, Aluga-se, Troca-se. Mãe usada, em estado de nova, cabelos pintados recentemente, sem vícios, movida a diesel, pega na subida e na descida, topa tudo sem reclamar, te deixa folgar legal. Se te deixar na mão, é porque você esqueceu da água, de dar uma passada no posto, de conferir esses detalhes comuns. Tem um belo estofamento, freios perfeitos, breque em cima, direção de piloto de fórmula um. Faço doação no caso de nenhum interessado”.

O objetivo era discutir gramática, e o exemplo até se encaixava. No entanto, o uso do poema publicado 24 anos atrás, sem nenhuma abordagem contextual, revoltou Fabbris. “Como mãe, senti-me ofendida. É um texto pejorativo, de duplo sentido em relação às mulheres. Nos coloca em uma posição de chacota”, critica. Ela compartilhou a imagem do slide com a produtora de audiovisual Celina Becker, que também lamentou. “É uma ofensa às mães, principalmente as solteiras. A expressão ‘deixa folgar legal’ é muito pesada, ainda mais em um conteúdo educativo”, reprova.

Uma reclamação das duas foi feita à ouvidoria da SEED, que em resposta explicou qual era o objetivo da aula, esclareceu não haver “qualquer objetivo conotativo ou depreciativo a nenhum gênero, seja masculino, seja feminino ou outro”, além de agradecer as observações feitas. Sem, no entanto, naquele momento, admitir que algo estaria errado ou que uma revisão nos conteúdos seria feita. O que deixou as duas ainda mais indignadas. “Achei que provocaria uma reflexão, mas quiseram mostrar que estávamos erradas. Para um exercício de poética, outro exemplo seria mais válido”, aponta Fabbris. De fato, em uma das aulas seguintes, disponível no site da SEED, o mesmo tema é abordado novamente e outro poema é utilizado para exemplificar o conteúdo, demonstrando que havia, sim, alternativas.

Procurada pela reportagem, a secretaria informou, em nota assinada pelo Departamento de Desenvolvimento Curricular da pasta, que o trecho citado “está no livro didático escolhido em consulta pública pelos (as) professores (as) da Rede de Educação do Estado do Paraná e é aprovado pelo PNLD (Plano Nacional do Livro e do Material Didático)”. Reiterou que não havia a intenção de depreciar nenhum gênero, mas que, “diante de alguns apontamentos sobre o texto utilizado”, optaram pela “substituição das aulas com um novo material que aborde o mesmo conteúdo e cumpra a função de atingir os objetivos de aprendizagem previstos para o ano”. Além disso, destacam “que será encaminhado ofício ao PNLD/MEC para maiores esclarecimentos”.

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| Foto: Reprodução

Formada em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e pós-graduada pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), a professora da rede municipal de Londrina, Angela Silva, acredita que o fato mostra como as formas de objetificação da mulher ainda persistem em nosso cotidiano, até na escola, apesar dos avanços. “Mostra que essa linguagem ainda é aceita para discriminar. É preciso contestar. Se a gente pensar na luta dos movimentos sociais feministas, esse texto usado dessa forma é uma afronta”, avalia. “É sempre preciso uma análise da realidade. Às vezes não se percebe, ou não se quer perceber, e essa cultura machista acaba sendo reproduzida. E a escola tem uma responsabilidade. Pensar a educação é pensar na linguagem, em como está se vivendo a realidade, e trazer isso para a sala de aula. O texto em questão, para abordar o machismo, por exemplo, é perfeito. Mas, para uma análise gramatical, sem um debate social para desconstrução de modelos retrógrados, não serve”, complementa Silva.

Uma das mais conhecidas frases da escritora e feminista francesa, Simone de Beauvoir, continua atual. “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”, alertava. E o questionamento vale não só para causas feministas, como também para as lutas contra o racismo e a homofobia, entre outras.

“No passado, era normal rir de piadas com gays, lésbicas, com negros, judeus, mulheres e tantos outros. Humoristas consagrados construíram carreira debochando de estereótipos, mas era outro momento. Hoje, ainda bem, não cabe mais isso e, quem insiste nesse tipo de abordagem, logo é alvo de críticas e até de processos. Não à toa, dias atrás, um participante do Big Brother Brasil, uma das maiores audiências da televisão atualmente, sentiu o peso de algo que para ele era piada, mas para os ofendidos, não. Embora estejamos em outra era, muito mais avançada, as respostas e as defesas, nessas situações, são sempre semelhantes. Culpa-se as origens, a falta de informação, mas geralmente não é isso, e sim a normalização de comportamentos que precisa ser combatida constantemente”, resume a antropóloga Maria Cristina Neves.

E como fugir dessas situações? Segundo Neves, aprendendo com erros e estudando sobre os movimentos como os feministas, antirracistas e contra a homofobia. "Hoje temos um mundo de informações à disposição. Se a pessoa tem um smartphone nas mãos, ela tem condições de se informar. É preciso deixar o pólo passivo do ‘eu não sabia, se eu errar me avise’ para uma atitude ativa, de buscar o esclarecimento, de estudar esses assuntos. E, em caso de erro, admiti-lo, pedir desculpas sinceras e aprender com ele, sem aquelas justificativas esfarrapadas do ‘mas lá de onde eu vim é normal’. O mundo mudou, avançou e é preciso avançar com ele”, aponta a antropóloga.

Cinco reações de mulheres contra atitudes machistas na TV

Pitty, cantora, no “Altas Horas” (2014)

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Durante uma participação no programa “Altas Horas”, apresentado por Serginho Groisman, na Rede Globo, a cantora Pitty reagiu ao comentário de um rapaz que afirmou: “se tivesse namorada, a menina não poderia sair com amigos, porque mulher é pra ficar em casa”.

— É por isso que você não tem namorada, amigo!

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Bruna Lombardi, atriz, no “Gente de Expressão” (1993)

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Nos anos 1990, Bruna Lombardi esteve na extinta Rede Manchete, comandando o programa “Gente de Expressão”. Ao entrevistar o cantor Bon Jovi, ouviu do popstar que ele “gastaria uma grana” para fazê-la feliz. A resposta de Bruna viralizou anos depois, nas redes sociais.

— Você está brincando? Dinheiro não me faz feliz. Eu tenho dinheiro suficiente, não preciso de dinheiro de homem nenhum.

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Paola Carosella, chef de cozinha, no “Masterchef” (2016)

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Ao anunciar qual das competidoras iria para a final da terceira temporada do programa “Masterchef”, na Rede Bandeirantes, o chef e jurado, Erick Jacquin, quis elogiar as competidoras Raquel e Bruna, mas acabou escolhendo uma clássica frase machista ao dizer que, devido aos dotes gastronômicos, ambas estavam “prontas para casar”. A colega, também chef e jurada da atração, Paola Carosella, rebateu imediatamente.

— Por que para casar? Elas estão prontas para comandar um restaurante estrelado.

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Jout Jout, jornalista, “Programa do Jô” (2015)

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Famosa pelos vídeos no Youtube, a jornalista e escritora Jout Jout enfrentou situações constrangedoras ao ser entrevistada por Jô Soares. Quando falava sobre o vídeo “Não tira o batom vermelho”, que aborda relacionamentos abusivos nos quais o parceiro não deixa a mulher usar essa cor de batom, o apresentador perguntou:

— Mas todos dizem que a moça tem 'cara de puta'? Não tem realmente nenhuma que esteja com 'cara de puta'?

JoutJout, visivelmente desconfortável, rebateu:

— O que é 'cara de puta', não é mesmo? Não se fala isso, não existe essa cara.

— Mas a pessoa não precisa ser puta para ter 'cara de puta’, continuou Jô, acompanhado pelos risos da plateia.

As perguntas machistas do apresentador provocaram revolta nas redes sociais.

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Titi Müller, apresentadora, “Lollapalooza” (2017)

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Durante a transmissão do festival “Lollapalooza”, pelo canal BIS, a apresentadora Titi Müller fez história ao chamar a atenção, ao vivo, para o machismo das letras do DJ, produtor e compositor israelense Asaf Borgore.

— O Borgore é um dos produtores mais polêmicos da atualidade. Ele nasceu em Israel e foi alçado à fama por vários hits e remixes de sucesso. Mas o lance é que as letras compostas por ele, extremamente machistas, misóginas e babacas, foram ganhando visibilidade e, obviamente, muitas críticas.

Após a repercussão, Titi comentou: “falei foi pouco”.

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Hiury Pereira - Estagiário*