“Ganhei no dia 13 de maio de 1988. Na época, 128 mil cruzeiros. Lembro porque foi no dia do centenário da Lei Áurea. Uma data marcante”. Zaed Amim Feris, vendedor aposentado de 84 anos, tem a lembrança fresca de quando acertou a quadra da Mega-Sena. Apostador assíduo das apostas da Loteria Federal e do jogo do bicho, o jogador criou um método para atrair a sorte: não repetir os mesmos números se perder. Mesmo com as limitações da Covid-19, o costume não cessou, apenas diminuiu. “Com a pandemia, jogo menos porque sou proibido de sair de casa. Ainda bem que a minha enteada Michele joga por mim. Para jogar no bicho, eu mesmo vou à rua e faço minha aposta. No passado, uma vez fui comprar pão e acertei a milhar na cabeça. Apostei na placa do carro”.

Os intervalos das atrações televisivas são recheados de propagandas de títulos de capitalização, sites de apostas esportivas e promoções que fazem a sorte parecer o caminho mais acessível para a mudança de vida. Os jogos são lucrativos. Porém, na grande maioria das vezes, apenas para quem comanda a banca. Os apostadores ficam reféns do rodar da bolinha, da retirada do número certo ou até do bom desempenho do time de futebol. Zaed Feris chegou perto de ganhar um bom dinheiro na Loteria Esportiva – criada em 1970. Apenas um resultado improvável seria capaz de afastar o prêmio. “Lá atrás, já passei raiva. Já perdi por um ponto na Loteria Esportiva. Apostei no Bahia contra o Treze-PB, que não tinha marcado nenhum gol. Nem empatado o time da Paraíba tinha, mas com o Bahia empatou. Senti uma vontade de falar palavrão. Só que não falei. Eu estudei para padre”, afirma o aposentado.

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Na obra “O corpo encantado das ruas”, o historiador e professor Luiz Antonio Simas trata da conhecida sorte de principiante, no capítulo “Do bicho ao bolão”. Mesmo apto de vasto conhecimento futebolístico, o escritor não conseguiu grandes resultados em apostas de botequim dos jogos da Copa da Rússia de 2018. Simas foi superado por uma criança de 7 anos e por uma senhora de 90 anos que nem sabiam da realização da competição.

O capítulo também cita a história de um goiano que ganhou uma bolada em 1975, na Loteria Esportiva. Miron Vieira de Souza não entendia de futebol e se confundiu, ao achar que o América-RN e o América-RJ eram o mesmo time. Pensou que seria um só time a jogar duas vezes no mesmo dia. Como bom palpiteiro, alternou vitória e derrota – pela lógica estabelecida, o time estaria cansado demais no segundo jogo. Entre outros acertos, o sortudo cravou que o lanterna América de Natal desbancaria o Vasco da Gama, campeão do torneio no ano anterior.

Atualmente, os sites de apostas esportivas alcançaram publicidade até durante a transmissão e intervalo da partida de futebol. Influenciadores digitais embarcaram na onda. Apostadores profissionais vendem até cursos. Os vídeos de anúncio do produto apresentam trabalhadores que mudaram de vida após entrar para o mundo das apostas. Ostentação com carros e viagens para o exterior. Quem deseja descobrir o método e acessar o grupo de mensagens das apostas dos gurus, precisa desembolsar o suado dinheiro. Os apostadores falam que é o investimento necessário para ensinar a “gerência de banca”. Agora, fora as casas de apostas, mais alguém está com lucro – e não é o apostador comum.

A partir de 30 de abril de 1946, os jogos de azar foram proibidos no Brasil, por Decreto-Lei de Eurico Gaspar Dutra. O argumento utilizado foi que a modalidade é “nociva à moral e aos bons costumes”. A legislação atual do país permite que apenas os jogos da Loteria Federal da Caixa Econômica sejam considerados legais. O advogado Wagner Lai, membro da Comissão de Direitos do Consumidor OAB/Londrina, explica o que estabelece o Art.50 da Lei das Contravenções Penais: “De maneira mais simples, estabelecer ou explorar jogos de azar é ilegal justamente por ter uma lei que assim proíbe. Difere-se de alguns jogos de carteados, como o pôquer. O jogo de azar é aquele em que se baseia na sorte, totalmente ou principalmente, enquanto que alguns jogos de carteados dependem da habilidade do jogador. No caso do pôquer, dependerá, por exemplo, de fazer a sua jogada ou blefe, observar seus oponentes e até analisar estatísticas de seu jogo. Portanto, não é qualquer jogo que é proibido, mas aqueles que dependem da aleatoriedade, da sorte”, afirma.

A discussão sobre jogos de azar também sempre rondou o Congresso. Um dos projetos mais antigos sobre o tema é o PL 442/1991, proposto pelo então deputado Renato Vianna, há quase 30 anos, que teria como objetivo legalizar o jogo do bicho. O advogado Wagner Lai também analisa possíveis efeitos da legalização da modalidade. “A análise do objetivo de políticos levantarem a pauta da legalização nos dias atuais não depende de questão unicamente jurídica. O que posso dizer é que o debate é o corolário da democracia e este é o papel dos políticos. Existe um leque enorme de temas a serem debatidos dentro dessas balizas constitucionais. Inclusive, arrisco a dizer que a questão de jogo de azar pode se tornar uma questão de saúde pública, em razão do vício. No que diz respeito aos efeitos que essas atividades causarão aos consumidores se aprovadas, por princípio, não serão diferentes de qualquer outro serviço existente no país. Deverão respeitar o Código de Defesa do Consumidor, além de outras eventuais leis que eventualmente vierem a surgir sobre o tema, caso aprovem a medida”, conclui.

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A técnica em enfermagem Katlyn Alves Soares Dias costuma fazer diferentes jogos semanais. “Sempre aposto na Mega-Sena, Quina e Lotofácil. Também compro título de capitalização”. Apesar de ser uma jogadora assídua, ainda não conquistou um prêmio expressivo. Insistente, acredita que a hora está por chegar: “Toda vez que vou conferir, é aquele frio na barriga. Eu acredito mesmo que vou ganhar. Quando não ganho nada, é frustrante, de certa forma, mas eu não desanimo. Se eu ganho ao menos o valor da aposta que fiz, já acho que saí no lucro”, afirma.

Em tempos fúnebres, a busca por esperança também está ligada à tentativa de alcançar a sorte. Mesmo durante a pandemia, Katlyn não deixou de ter confiança no jogo. Pelo contrário, as apostas ficaram mais frequentes. “A fé é umas das coisas que mais aumentou durante a pandemia e, consequentemente, a fé de ter uma vida melhor também permanece. Faço minhas apostas online ou procuro ir até a lotérica em um horário que não há muito movimento, mas não deixo de ir. Mentalizo o prêmio todos os dias. Já sei cada coisa que irei fazer caso eu ganhe uma bolada. Sou otimista”.

A Mega da Virada do fim de 2020 teve dois ganhadores. Cada aposta faturou R$162,2 milhões de reais. O primeiro ganhador, de Aracaju (SE), já retirou o prêmio. O ganhador (ou ganhadora) de São Paulo não resgatou o prêmio. O prazo para retirada se encerrou no dia 31 de março. Os ganhadores precisam retiram o prêmio em até 90 dias. Quando o dinheiro não é retirado, a verba é encaminhada, de forma integral, para o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).

Mesmo com a sorte ao seu lado e a fortuna à disposição, o apostador paulista não teve a fé necessária para checar o bilhete. Pode até ter esquecido da aposta feita. A probabilidade de faturar a Mega-Sena em uma aposta simples é de 1 em 50 milhões, de forma aproximada. Em relação ao jogo do bicho, a chance de acertar a milhar na cabeça é de 1 em 10.000. Porém, calcular os números é bobagem. Jogadores que sonham com os números ou animais, fazem simpatias ou apostam nos sinais capturados durante o dia, não querem saber de chances matemáticas. Se a situação do Brasil exala revolta e sofrimento, a fé se firma como expectativa de tempos melhores – não só nas apostas.

* supervisão Patrícia Maria Alves (editora)

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