O código eleitoral promulgado em 1932 concedeu o direito ao voto às mulheres. Porém, as casadas continuavam dependendo de autorização do marido para escolher seus candidatos. Essa restrição só foi derrubada dois anos depois. Já o decreto-lei 3.199, de 1941, a chamada “Lei do Esporte”, publicado durante a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, proibiu mulheres de praticar profissionalmente esportes considerados “incompatíveis com as condições de sua natureza”, incluindo o futebol, e vigorou por 40 anos. E até 1962, as mulheres casadas só podiam trabalhar fora se o marido permitisse. A autorização poderia ser revogada a qualquer momento, de acordo com o que previa o Código Civil de 1916. Pelo documento, as mulheres casadas eram consideradas “incapazes”, não podiam abrir conta em banco, ter estabelecimento comercial ou mesmo viajar sem a autorização dos maridos.

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Os exemplos são alguns recortes de como as coisas não foram fáceis para as mulheres ao longo da história. Para homenagear e marcar a luta por direitos e contra preconceitos, o Dia Internacional da Mulher é comemorado em 8 de março. A ideia de uma celebração anual surgiu depois que o Partido Socialista da América organizou o Dia da Mulher, em 20 de fevereiro de 1909, em Nova York, buscando a igualdade de direitos civis e em favor do voto feminino. No ano seguinte, durante as conferências de mulheres da Internacional Socialista, em Copenhague, também foi sugerido que o Dia da Mulher passasse a ser lembrado todos os anos, mas sem definir uma data específica.

Em 8 de março de 1917, na Rússia, houve uma grande passeata de mulheres, em protesto contra o preço dos alimentos, o desemprego e a deterioração geral das condições de vida no país. Operários acabaram se juntando à manifestação, que se estendeu por vários dias e acabou por precipitar a Revolução de 1917. Nos anos seguintes, o Dia da Mulher passou a ser comemorado naquela mesma data. Em 1975, o dia 8 de março foi instituído como Dia Internacional da Mulher pela Organização das Nações Unidas (ONU). Atualmente, a data é comemorada em mais de 100 países.

A briga por direitos atravessou décadas e hoje, apesar de melhores condições, a mobilização segue constante e necessária. Espaços vão sendo ocupados com maior destaque e cada vez com mais competência. O Corpo de Bombeiros do Paraná foi criado em 1912, mas só em abril de 2005 houve a incorporação das mulheres nos quadros de oficiais. Três anos depois e então recém-formada em Educação Física, Luisiana Guimarães Cavalca decidiu seguir o caminho de salvar vidas: passou nas provas da UFPR, encarou os três anos do curso de formação e hoje é capitã e subcomandante do 1º SGB de Maringá. Na trajetória, quebrou barreiras e preconceitos, assim como suas colegas precursoras, das primeiras turmas. “Somos muito respeitadas. Se há algum machismo ou preconceito, principalmente em relação à capacidade física, ele é velado e cada vez menor. Quem ainda insiste nisso logo percebe, naturalmente, como é descabido”, analisa.

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No ano passado, a capitã Luisiana esteve no Pantanal, junto com o grupo de voluntários que ajudou a combater as chamas que castigaram a região. Foram 25 dias superando as dificuldades do trabalho e a saudade dos filhos. “Às vezes demorava a ver os vídeos que eles mandavam, para não me emocionar. Apesar da distância, foi um período de grande crescimento, de aprendizado pessoal. Conhecer aquela realidade foi importante para o desenvolvimento da minha liderança, além da integração com grupos de outros estados, o conhecimento de novas e diferentes técnicas. Sem falar na contribuição com o meio ambiente. Minha profissão traz muitas responsabilidades e é apaixonante”, emociona-se.

A mesma sensação de paixão pelo trabalho realizado vem de Lívia Pini, delegada-chefe do Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítimas de Crimes (Nucria), em Londrina. A afinidade com a área penal veio dos tempos da faculdade de Direito. Culminou com a decisão pelo concurso da Polícia Civil do Paraná, embora a família se preocupasse com a segurança dela. “No dia da prova, a fila do banheiro masculino era bem maior, aí percebi como éramos menos mulheres”, recorda. No curso de formação, dos 62 alunos, 15 eram mulheres. Histórias pessoais de preconceito, Lívia não passou. Mas já ouviu relatos de situações antigas que até hoje chocam. “Houve casos de servidoras que engravidaram e ouviram de superiores que a polícia não deveria ser lugar para mulheres. Um absurdo”, critica, lembrando a pressão que recai sobre as mulheres diariamente. “Muitas precisam lidar com a jornada em casa além do trabalho fora, mas seguem enfrentando e driblando dificuldades, ocupando espaços. Não podemos ceder, pois avançar é um processo”, analisa. No dia a dia, a oportunidade de fazer a diferença na vida de quem busca ajuda é marcante. E, em alguns momentos, a delegada precisa até fazer o papel de terapeuta. “Há casos, por exemplo, em que uma mãe traz a filha que sofreu abuso de algum familiar e, conversando, você descobre que no passado a mãe passou por aquela mesma situação e sente-se culpada. Aí é um trabalho de fortalecimento da mulher, de resgate, acolhimento, e isso mexe bastante com a gente”, explica.

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Para elas, o Dia Internacional da Mulher é data de reflexão. A capitã Luisiana se emociona ao falar da importância das mulheres que desbravaram caminhos e do legado que quer deixar para a filha. “É um dia muito importante para lembrar tantas que vieram antes de nós, lutaram e ajudaram a conquistar um mundo mais igual. Eu passei dificuldades também e fico feliz em deixar um mundo com mais equidade para minha filha, um futuro melhor para ela”, detalha. Para a delegada Lívia, não é dia apenas de ganhar flores. “É refletir sobre o caminho trilhado e a trilhar. Por mais que tenhamos avançado, é preciso crescer na política, nos cargos de direção. Existe um caminho longo ainda a percorrer”, pondera.

Luta permanente

Batalha por políticas públicas e direitos atravessa décadas, sem horizonte para acabar

Referência na briga pelos direitos das mulheres, a filósofa e feminista francesa Simone de Beauvoir considerava que a luta deveria ser permanente. “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”, afirmou em uma entrevista, na década de 1970. Mais de 40 anos depois, as estatísticas comprovam a preocupação.

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a presença das mulheres no mercado de trabalho ainda é menor do que a dos homens no mundo. Em 2018, apenas 48% das mulheres maiores de 15 anos estavam empregadas – para os homens, esse número era de 75%. Já um levantamento do site brasileiro de classificados de empregos Catho, realizado em 2019, apontou que o número de mulheres que abandonam o trabalho por causa dos filhos chega a 30%, enquanto somente 7% dos homens deixam seus empregos pelo mesmo motivo. Para agravar a situação, um estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV) constatou que metade das mulheres que engravidam perdem seus empregos quando retornam da licença-maternidade. Sem falar nos salários: mesmo com uma queda na desigualdade salarial entre 2012 e 2018, as trabalhadoras ganham, em média, 20,5% menos que os homens no país, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

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Para a professora Angela Silva, membra do Coletivo Feminista Marielle Franco e da Frente Feminista de Londrina, os números mostram como a sociedade ainda é estruturalmente desigual. “O sistema capitalista impõe que as mulheres sejam mães para gerar mais pessoas e manter a roda girando. Quanto mais pessoas no mundo, mais mão de obra. E aí vem o genocídio, o encarceiramento, o desemprego, e isso atinge de forma muito maior as mulheres, principalmente as negras. É um sistema cruel, um machismo estrutural que viola nossos direitos”, explica. A luta pela causa veio com a participação nos coletivos, mas a consciência surgiu em casa. Caçula de 12 irmãos, Angela se incomodava com o fato dela, da mãe e das cinco irmãs terem que fazer os serviços domésticos e cuidar dos seis irmãos homens. “Ali começou uma discussão. Eu não achava justa aquela situação e o debate iniciou naquele ambiente, às vezes sem muita voz, e comecei a discutir e militar pela causa”, relembra.

Hoje, ela aponta que a luta não se restringe só aos direitos das mulheres, mas por uma sociedade mais justa. A Marcha das Mulheres de 2017, por exemplo, teve como uma das bandeiras a oposição à reforma da Previdência proposta pelo governo Michel Temer, com atos em pelo menos 12 capitais. Em 2019, a data trouxe a Greve Internacional de Mulheres, contra o machismo, a desigualdade de gênero, os feminicídios e os projetos que atacam direitos. “Nós lutamos por uma sociedade com menos opressão. Uma greve pela vida, contra a fome, em defesa de uma educação pública gratuita de qualidade. Agora, durante a pandemia, pelo auxílio emergencial, por vacina para todos. A luta é muito mais ampla”, analisa.

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Já a estudante Maria Julia de Assis Orcelli não se considera feminista. Em vídeos nas redes sociais, ela, que é católica e participante de movimentos como o Caminhando com Maria, avalia ser incoerente ser católica e feminista, por discordar de pautas como o direito ao aborto, por exemplo. Mas em uma coisa elas concordam: não pode haver espaço para preconceito e violência. “Tudo começou por causa de uma mulher, nossa história mostra isso. Então temos muitas virtudes para guiar e mudar a sociedade para melhor, não só sendo mãe, mas enxergando e trabalhando por um mundo com mais oportunidades, mais justo, com as mulheres servindo de inspiração”, aponta.

A advogada Marcella Camila Volpato Zichack relata que em seu meio profissional a discriminação contra a mulher acontece, mas de forma velada. Apesar da discrição, ela percebe que em diversas ocasiões homens são vistos como mais competentes para certas atividades ainda que apresentem as mesmas habilidades que uma mulher. Além disso, a remuneração no país permanece inigualitária. Um de seus grandes incômodos como mulher é como continuam desprotegidas e, por esse motivo, têm medo de andar sozinhas na rua ou de deixar a porta destrancada. Por outro lado, Marcella reconhece que as conquistas das mulheres sempre acontecem com um peso muito maior dada a batalha para atingi-las, e completa: “Sou muito feliz em ser mulher”.

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Carla Benedetti, advogada e jornalista londrinense, observa como as mulheres são constantemente exigidas a demonstrar sua capacidade, em muitas vezes sendo requeridas em um exagerado nível de perfeição que não é demandado aos homens. Além disso, a valorização profissional da mulher é dificultada em relacionamentos amorosos, uma vez que sente que diversos homens sentem uma ameaça ao dividir os gastos da casa, seja por ego ou vaidade, ao olhar de Carla. Mas a advogada enxerga que “apesar das dificuldades, a diversidade constrói pessoas mais fortes e adeptas às mudanças”.

Para o futuro, o objetivo é, cada uma do seu jeito, lutar contra os obstáculos. “A mulher é impactante. Pela voz nós vamos mudar a sociedade para melhor. É preciso expor nossa luz, ocupando espaços, empreendendo, liderando”, sugere Maria Julia Orcelli. “O dia 8 de março é data de reflexão e luta. Não há muito o que comemorar, mas relembrar as lutas, as personagens importantes, como Clara Zetkin, mas a cada dois minutos, uma mulher é estuprada. A cada seis segundos, uma mulher é vítima de assédio. Então é dia de compromisso, não só nosso, mas também dos homens, que precisam debater seu papel nesse processo. Há muito ainda o que avançar”, argumenta a professora Angela Silva.