O Pix, sistema digital de pagamentos lançado pelo Banco Central (BC), em novembro de 2020, veio para facilitar a vida dos brasileiros. Com ele disponível 24 horas por dia, sete dias por semana, usuários cadastrados podem compartilhar as chaves de acesso cadastradas – seja o e-mail, o telefone, CPF ou um número aleatório gerado pelo sistema – para realizar transações bancárias instantâneas. A novidade tem potencial para desbancar TED e DOC, conhecidos meios de transferência de valores, pela simplicidade e custo zero para pessoas físicas. Os idealizadores provavelmente pensaram na praticidade quando desenvolveram a ferramenta mas, certamente, não imaginaram um uso específico que só poderia ter saído da criatividade – ou ousadia – dos brasileiros: a paquera.

Imagem ilustrativa da imagem Meios com outros fins: usuários ressignificam aplicativos, reviram a lógica e encontram novos usos e funções
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A ressignificação do Pix começou com a história de uma garota do Rio de Janeiro (RJ), no início deste ano. O relacionamento dela teria acabado após uma traição. Inconformado, o namorado a bloqueou em todas as redes sociais. A solução encontrada por ela foi fazer transferências via Pix no valor de R$ 0,01 acrescidas de mensagens pedindo desculpas. De acordo com o BC, ao contrário dos aplicativos de mensagens, não é possível bloquear transações via Pix, exceto em caso de fraudes. A moça, então, conseguiu chamar a atenção – não só dele, mas do mundo todo – e a história viralizou nas redes sociais. Não se sabe se o casal reatou ou não, mas o episódio foi o primeiro registrado do uso deste meio para outro fim e, a partir daí, surgiram os “pixsexuais”: indivíduos que sentem atração por quem faz transferência por Pix para suas contas, aleatoriamente.

O apelido faz sucesso na internet e milhares de usuários passaram a “brincar” com a modalidade. “Vi nos stories de um amigo uma provocação de propor um valor de Pix, entre R$ 1 e R$ 5, para cada sentimento ou interesse que a pessoa teria por ele e copiei. Acabei recebendo, no total, R$ 37. Achei pouco”, brinca o analista de sistemas André Faria. Mas as cantadas em reais tinham, nesse caso, um objetivo além da azaração: o valor foi doado pelo analista para uma entidade filantrópica que vem entregando cestas básicas durante a pandemia. “Talvez sem o viés social eu teria recebido menos ainda”, diverte-se e lamenta Faria.

O caso do meio de pagamento, no entanto, não é a primeira vez que uma novidade ou solução virtual é “reescrita” de acordo com o cotidiano dos usuários. O “Animal Crossing”, jogo criado em 2001 e que passou do videogame para os celulares, virou opção para conhecer pessoas e marcar encontros românticos e de amigos. O “Second Life”, ambiente virtual e tridimensional que simula a vida real e social do ser humano por meio da interação entre avatares, criado para distrair e entreter, foi usado por muitos para vencer a timidez e melhorar as relações pessoais, de acordo com psicólogos. Até o “Whatsapp” passou de simples aplicativo de troca de mensagens para vitrine de produtos, cardápio de restaurantes e, infelizmente, até de central de informações erradas e notícias falsas.

“O ser humano tem essa condição inerente à sobrevivência, que é a de adaptar muitas coisas para facilitar a vida. É uma questão natural, de evolução, e com o uso da tecnologia não seria diferente”, opina a antropóloga Maria Cristina Neves. A atual relação com aplicativos e plataformas também aprofunda um conceito que vem ganhando cada vez mais espaço na sociedade, o cibridismo. Ele designa a hibridação entre os mundos on e offline, ou seja, a mistura crescente entre as duas esferas, fazendo com que seja cada vez mais difícil existir em apenas uma delas. Basicamente, não existe mais estar “on” ou “off”, já que esses estados estão juntos, ao mesmo tempo. “Essa confusão entre real e virtual é cada vez maior e tende a se intensificar, ao passo que a tecnologia está incorporada em quase tudo no nosso dia a dia, com as pessoas conectadas praticamente o tempo todo. E com o desenvolvimento da inteligência artificial, a confluência deve se aprofundar”, prevê Neves.

Com esse cenário, fica difícil não associar o amanhã à série britânica “Black Mirror”. Lançada em 2011, ela aborda temas obscuros e satíricos que se passam em um presente alternativo ou em um futuro próximo, com objetivo de examinar e provocar a sociedade moderna a respeito das consequências imprevistas das novas tecnologias. “Upload” é outra série a abordar o tema. Lançada no ano passado, ela se passa em 2033, época em que, na ficção, os humanos podem ser transportados para uma vida virtual após a morte. Na história, o protagonista morre prematuramente e vai para um paraíso digital, onde fica sob o controle de sua namorada possessiva. Durante a confusão, ele começa a se envolver com sua representante viva de atendimento ao cliente, ou “anjo”. Parece loucura, mas quando se pensa no poder dos algoritmos em armazenar informações sobre nosso comportamento e, em seguida, sugerir produtos e afins sob medida, por exemplo, o sinal de alerta, ou os devaneios sobre o que pode vir pela frente, acende ainda mais forte.

“A pandemia aprofundou o uso de plataformas virtuais de reunião no trabalho, popularizou as lives de entretenimento, impulsionou o uso de aplicativos de entrega de comida e até de compras do mercado, aumentou as vendas de e-commerce. São aspectos positivos mas, com eles, sempre surgem os negativos também. É possível que muitas pessoas se isolem socialmente ainda mais, que golpes se multipliquem, que notícias falsas e ataques de desconstrução de reputação aumentem. São os efeitos adversos, como os vazamentos de dados que tivemos recentemente. Mas não dá para fugir da realidade que é a tecnologia cada vez mais imersa em nossas vidas. Como sempre, é preciso se adaptar e se preparar”, argumenta a antropóloga.

Nessa confluência maluca, coisas inimagináveis saltam do virtual para o real. Na última semana, o presidente-executivo do Twitter, Jack Dorsey, vendeu seu primeiro tuíte, postado em 2006, por quase US$ 3 milhões como NFT, sigla de “non-fungible token”, ou “token não fungível”. Um item fungível, como o dinheiro, pode ser trocado por outro. Uma cédula de real, por exemplo, pode ser substituída por outra de mesmo valor. Já os itens infungíveis são como as obras de arte e objetos raros, ou seja, exemplares únicos. Portanto, o token não fungível representa algo específico e individual, e não pode ser substituído – nesse caso, dentro do ambiente virtual.

O NFT foi vendido durante um leilão na plataforma “Valuables”, controlada pela empresa norte-americana Cent, e adquirido por meio da criptomoeda Ether por 1.630,5825601 ETH, quantia que no momento da venda era avaliada em US$ 2.915.835,47, de acordo com o CEO e cofundador da Cent, Cameron Hejazi. O comprador, Sina Estavi, é da Malásia e atua como CEO da companhia de blockchain Bridge Oracle. “Eu não entendi quase nada do que você me disse, mas todos esses termos e inovações são uma realidade para essas pessoas”, aponta, com bom humor, a antropóloga Maria Cristina Neves. “É uma moeda que só existe no virtual, um certificado de valor que só existe no virtual, negociado por empresas que talvez nem tenham uma sede física, mas tudo isso tem alto valor no mundo real. É maluco de imaginar. Mesmo que a gente não entenda ou não queira entender, essas tecnologias vão se impor e derivar outras soluções que, em breve, vão entrar nas nossas vidas e até transformá-las, quem sabe”, complementa.

Em outro indício de cibridismo cada vez mais profundo, o Banco Santander resolveu atrair jovens clientes em uma promoção inusitada: correntistas que pagam contas com o cartão de crédito do banco ganham números da sorte e concorrem a dois sorteios de 1 milhão de dimas. E quem vincular as chaves Pix ao banco também pode garantir mais 600 dimas todos os meses. Se você não entendeu, a gente explica. As “dimas” são diamantes, a moeda virtual do jogo online “Free Fire”. Ou seja, o gasto em reais aqui, pode gerar lucros em dimas lá. “A melhor saída é buscar se adaptar a esse mundo que muda o tempo todo, cheio de novidades. E muitas dessas vão ser criadas para uma função e vamos acabar descobrindo uma grande utilidade para outra. Precisamos nos reinventar com tranquilidade, sem enlouquecer. É um caminho sem volta”, aconselha Neves.

Cuidados com o Pix

Em reação à onda dos “pixsexuais”, o Banco Central divulgou nota ressaltando que o único objetivo da ferramenta é dar mais agilidade às transações financeiras, sendo um meio de pagamento, não uma rede social. A entidade acrescentou ainda que não há previsão legal para bloqueio de usuários específicos dentro do sistema. No entanto, quem não quiser ser incomodado com possíveis mensagens, pode configurar o aplicativo do banco onde mantém a conta para não receber notificações de pagamentos. E vale o alerta para quem compartilha suas chaves do Pix na internet, esperando receber uma transferência: a exposição tem riscos, principalmente quando a chave cadastrada é o CPF ou número de telefone, que são dados sensíveis. Já a chave aleatória, que não inclui dados pessoais, é mais segura de ser compartilhada, já que não dá acesso à conta, servindo apenas para receber o dinheiro. Porém, o nome completo fica visível durante a transação.