A invisível vida nas ruas de Londrina

Homens e mulheres com histórias singulares usam as ruas e espaços públicos da cidade como moradia e lutam para sobreviver

Publicado sexta-feira, 03 de março de 2023 | Autor: Douglas Kuspiosz e Ana Carla Dias - Especial para a FOLHA às 19:53 h

É impossível andar pelo Centro de Londrina e não perceber a presença de um grande número de homens e mulheres em situação de rua. Invisíveis para a maioria das pessoas que caminham apressadas, moradores de rua ocupam espaços como Concha Acústica ou praças da cidade, e tentam levar a vida apesar das dificuldades.

Douglas Kuspiosz - Especial para a FOLHA

Esse é o caso de Vagner Correia Simões, 50, que há cerca de um ano vive em um barraco em uma praça de Londrina. Dividindo o espaço com outras duas pessoas, Vagner trabalha descarregando caminhões e sonha em comprar uma casa.

Em uma tarde, ele estava sentado, vestindo seus óculos e olhando para seu celular. Havia recebido uma quantia em dinheiro de uma herança. Para ele, o valor é mais um passo para conseguir seu próprio endereço.

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| Foto: Douglas Kuspiosz

Mas, enquanto isso não acontece, Vagner e seus dois colegas mantêm o barraco e a praça em plena organização. Quem passa pelo local vê vassouras, galões com água e até um varal, onde ele pendura suas roupas. E, mesmo com as chuvas recorrentes nessa época do ano, garante que o barraco não sofre com infiltração. “Aqui não cai uma gota d’água”, diz.

Eles comem em um restaurante na região, que oferece um preço mais popular. Mas eles também cozinham em um fogão improvisado com tijolos. “Nunca faltou comida nenhum dia”, relata. Comida e roupas, inclusive, vindas de doações, são compartilhadas com outras pessoas em situação de rua.

“A gente se ajuda, estamos na mesma situação. A doação que a gente ganha, a gente reparte com esse povo também. Sabão pra tomar banho, espelho para fazer a barba, fazer uma ‘bóia’”, conta.

Vagner foi para as ruas após cumprir uma pena de 12 anos e 4 meses de cadeia. Antes de ser preso, tinha sua casa no Jardim Novo Amparo. Precisou vender o imóvel para pagar sua defesa.

Agora, está tentando reconstruir sua vida. O dinheiro que recebe, guarda em uma conta bancária. O mesmo acontece com o valor do Auxílio Brasil. Ele também cita o atendimento recebido pela assistência social do município. “Estão apoiando eu para entrar na sociedade de novo, para não ficar assim, igual eu tô aqui”, diz.

Vagner Correia Simões
Vagner Correia Simões | Foto: Douglas Kuspiosz

Pai de quatro filhos e avô de dez netos, Vagner estava sentado e olhando para o celular naquela tarde. Não estava trabalhando devido ao seu joelho inchado. O bico tem ajudado a sobreviver e a avançar em seu projeto de residência - mas a vontade é conseguir um emprego fichado, como ele chama trabalho registrado em regime de CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Para isso tem organizado sua documentação.

Mesmo estando há pouco mais de um ano na rua, ele acredita que o número de pessoas nessa situação aumentou em Londrina. A maioria, acredita, é natural de outros municípios. “Tem muito de fora, pode perguntar, é tudo de fora.”

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| Foto: Roberto Custódio

Em busca de uma oportunidade

Sentado em um dos bancos do Centro POP (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua), Tiago Nunes Vieira, 32, segura duas ou três folhas com cópias impressas de seus documentos. Ele havia ido ao local, que presta serviços especializados para pessoas em situação de rua, para confeccionar seu currículo. Está em busca de um emprego e de uma oportunidade para mudar de vida.

Tiago Nunes Vieira
Tiago Nunes Vieira | Foto: Douglas Kuspiosz

Morando em abrigos há cerca de um ano e meio, Tiago diz que se adaptou a esses espaços. Acredita que tem mais tranquilidade. Lutando contra a dependência química há cerca de 15 anos, o rapaz, antes de ir para a rua, trabalhava na área da construção civil. “Eu estou nessa situação por causa de droga. Comecei muito cedo, com 18 anos, e aí eu tô seguindo a vida. Estou tentando sair, mas é difícil”, conta. “Hoje eu estou bem melhor, graças aos lugares que eu estou procurando, Centro Pop, assistência. Ajuda você a sair daquele foco.”

No seu ponto de vista, a falta de respeito é uma das principais dificuldades de quem está na mesma situação que ele. Há muito preconceito e uma invisibilidade, inclusive profissional. É como se quem olha alguém nessa situação, não percebesse outro ser humano. “Você não existe”.

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| Foto: Douglas Kuspiosz

“Tem pessoas que não dão oportunidades para esse tipo de pessoa. Eu acho que essas pessoas merecem mais oportunidades. Devido ao preconceito, eu vejo isso”, diz. “Se eu tivesse uma oportunidade, eu aproveitaria. Pelo menos eu.”

Tiago também é enfático ao dizer que deveriam ser oportunizadas mais atividades para quem está em situação de rua. Ocupações “para interagir, sair do foco da rua”, como ele mesmo diz.

Isso porque, na visão de quem mantém essa rotina, o número de pessoas em situação de rua tem aumentado nos últimos anos. “Está cada vez pior, não só aqui, mas em outros lugares”.

Sobrevivendo na rua

No mesmo dia e lugar, Amelia Gonçalves Dias, 51, pegava um dos lanches distribuídos pelo Centro Pop. Vivendo nas ruas há dois anos, hoje ela fica em um mocó com outras pessoas na mesma situação.

Dependente química, a mulher saiu de casa após uma “decepção de relacionamento”, como ela mesma diz. Abandonou sua vida na região central de Londrina e passou a sobreviver nas ruas. Com lágrimas nos olhos, conta que trabalhava como costureira e modelista, inclusive com graduação na área da Moda. Também tem no currículo um curso técnico de paisagista.

Amelia Gonçalves Dias
Amelia Gonçalves Dias | Foto: Douglas Kuspiosz

Amelia conta que, sempre que fica desanimada, vai para o Centro POP. Outro local de referência utilizado por ela é a Casa da Sopa.

A moradora não tem contato com a família, e diz não querer. “Minha família não tem envolvimento com nada disso. E se eu tiver contato, eu sinto que vou prejudicar eles de alguma forma”, diz a mulher que tem quatro filhos.

Amelia começou a usar crack antes de ir para a rua. Mas chegou um momento em que não podia mais esconder a situação. “As primeiras pessoas que me abandonaram nessas condições que eu estou agora foi minha própria família”, relata.

Ela acredita que a aceitação - da família e da sociedade - em relação a quem tem dependência química é uma dificuldade. Também cita um preconceito maior com quem é usuário de crack. “A sociedade odeia o usuário de crack, chama de noiado. Não é todo mundo que é ruim”, acredita, pontuando que muitas pessoas “simplesmente foram vítimas de uma sociedade hipócrita, machista e egoísta.”

A moradora afirma que no começo do uso “ainda tem um limite para você parar”. Mas critica a falta de apoio e de entendimento, além do julgamento das outras pessoas. “Podia pelo menos entender que no início tem uma chance de cura, de tratamento, de aceitação. Depois de um certo tempo não tem mais, porque a gente se decepcionou, já se isolou do mundo, não quer ver mais ninguém.”

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| Foto: Douglas Kuspiosz

Questionada sobre o que acha que deveria ser feito para melhorar a situação de quem vive na rua, Amelia lista a aceitação e o acolhimento. Tem que ser um abraço e um empurrão, diz, pedindo também a presença de equipes de atendimento na rua. “Para mim é isso. Eu fico com uma bandeirinha do Brasil: ‘socorro, socorro’ e ninguém chega. As pessoas às vezes não querem nem chegar próximo da gente”, lamenta.

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| Foto: Roberto Custódio

Além do sofrimento, a violência

A FOLHA conversou, ao longo das últimas semanas, com moradores de rua de Londrina. Alguns dos relatos frequentes dão conta da insegurança de quem tem a calçada como cama, inclusive com denúncias de violência policial.

Em janeiro, um policial militar foi preso em Londrina suspeito de estuprar duas moradoras de rua e importunar sexualmente outra em dezembro de 2022.

As abordagens, contou um homem que não quis se identificar, têm ficado mais violentas no último ano, com casos de agressões físicas. Ele diz que homens e mulheres são vítimas. “Se pegar usuário de droga ali na frente, Nossa Senhora, ‘barbariza’ os caras”.

Já uma mulher, cuja identidade também será mantida sob sigilo, relatou que foi agredida em três situações por policiais, “simplesmente pelo fato de a gente ser usuário de drogas", pontuando que “não tinha necessidade de bater”.

Um segundo homem, em contrapartida, disse que nunca sofreu agressões por parte de autoridades. “Nunca presenciei nada grave”.

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| Foto: Roberto Custódio

Onde está a segurança quando a rua vira moradia?

Londrina já passou de 580 mil habitantes, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), uma cidade que caminha a passos largos para ser referência em moradias verticais e que atravessa o boom da construção civil, se destaca também pelo número de pessoas em situação de rua e de famílias que sobrevivem de renda zero. De acordo com os dados da Secretaria Municipal de Assistência Social, 58.117 pessoas não têm nenhum tipo de renda na cidade, totalizando 26.514 famílias que dependem exclusivamente de benefícios sociais para se manter. Reportagem da FOLHA de 22 de fevereiro de 2023 mostrou dados retirados do Cadastro Único (CadÚnico) de janeiro, que também aponta que 81.436 pessoas vivem com uma renda entre R$ 1 e R$ 651 por mês.

Ana Carla Dias - Especial para a FOLHA

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| Foto: Gustavo Carneiro

Esse cenário faz disparar um alerta para as políticas públicas e sociais sobre o tratamento com pessoas que vivem em circunstâncias de extrema vulnerabilidade e pobreza para que se evite ainda mais pessoas em situação de rua. Na ocasião da reportagem de Jessica Sabbadini em fevereiro, Jacqueline Micali, secretária de Assistência Social de Londrina, alegou que o Brasil vem passando por uma recessão desde 2015, que se agravou com a pandemia, ressaltando que não é possível isolar o município do resto do estado e do país. “Nós temos que separar o que é de renda mínima, por exemplo, que daí é um programa de um Governo Federal para um país, de ações que são de responsabilidade da união, do estado e do município para enfrentar esse problema”, afirmou para a reportagem.

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E QUANDO JÁ ESTÃO NAS RUAS?

Quanto as pessoas que já estão na rua, um dos recursos oferecidos pela prefeitura de Londrina é a unidade do Centro POP (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua), no qual são realizadas atividades especializadas e orientadas por profissionais da área da psicologia e assistência social. Um atendimento direcionado que visa a minimização do sofrimento para essas pessoas.

Em casos de situações ainda mais delicadas, a exemplo do envolvimento de crianças e adolescentes, esses profissionais oferecem um forte apoio que facilita o processo de superação da condição para romper com os riscos vivenciados.

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| Foto: Isaac Fontana/Framephoto/Folhapress

Porém, mesmo que os órgãos públicos como o Centro POP trabalhem pela promoção da autonomia dessa população, para que as ruas não sejam o seu último endereço, é necessário que cada um construa ou retome novos vínculos de pertencimento, o que é a condição fundamental para o processo de inclusão social, colocando-as mais próximas e mais aptas para possíveis oportunidades de geração de renda e também o resgate do convívio familiar e comunitário.

Em Londrina, existem pontos já conhecidos pela superlotação de pessoas sem moradia e que fixaram sua permanência em locais estratégicos nas ruas. Esses casos estão em observação constantes pela Secretaria de Assistência Social de Londrina, segundo Micali. A secretária de assistência social, explica que durante visitas e atendimentos são encontradas pessoas de Londrina, mas muitos de vindos de outras cidades. Um fluxo de pessoas que passam por Londrina ou chegam até o município por diversos motivos, por exemplo, na busca de emprego, “é feita a avaliação durante a abordagem social, após isso, fazemos o contato com os familiares, quando eles possuem, então fazemos o retorno familiar e concedemos a passagem para o município que a pessoa está se dirigindo. No último mês tivemos um número de 40 pessoas em situação de rua oriundos de cidades da região que passaram pelo município, mas nenhum permaneceu aqui”.

INSEGURANÇAS

A insegurança sentida pelas pessoas que vivem nas ruas é espelhada na insegurança de quem vive sob os tetos vizinhos as áreas movimentadas por andarilhos. O medo mútuo é a mesma face de um problema social que se agrava.

Ao sair pela porta de casa ou do prédio o choque entre as realidades pode criar atitudes violentas contra as pessoas em situação de rua que são taxados de criminosos sem informação e a repulsa reprime a assistência por parte dos moradores com teto.

De um lado, quem está indo para as ruas por falta de condições básicas de subsistencia e do outro quem, está protegido por uma moradia, é envenenado pelo preconceito causando desavenças e inúmeros chamados para a Guarda Municipal, Polícia Militar e assistência social.

A região central de Londrina é uma dessas áreas de confronto. Uma grande concentração de pessoas em estado de vulnerabilidade usa de espaços públicos para se abrigar e gera desconforto em comerciantes, “Essa região do Bosque Central, Concha Acústica e embaixo da marquise de uma loja de instrumentos musicais é um retrato de um problema social crônico. Você vê as pessoas dormindo por lá, olha o estado da pessoa e percebe nitidamente o abandono, mas não são pessoas violentas, porém por conta da dependência química são pessoas que podem reagir de forma imprevisível”, explica Nelson Villa, 52, Tenente Coronel do 5º Batalhão da Polícia Militar de Londrina.

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| Foto: Gustavo Carneiro

ACOLHIMENTO

Os serviços que visam a supressão da falta de moradia e acolhimento dessa população são as casas de passagens femininas e masculinas, repúblicas de acolhimentos. Em Londrina, as repúblicas são divididas em duas categorias, moderada e leve. Dentro da “moderada” um educador permanece junto aos acolhidos, já a república “leve” os indivíduos permanecem quase de forma autônoma, são responsáveis pela casa e a mantém financeiramente, mas ainda podem receber alguma ajuda de custo, em ambas as repúblicas para o público feminino, as mães podem ficar junto dos seus filhos, esse passo a passo para iniciar novas condições de vida até conseguir manter fora das ruas é chamado de “Trilha da Cidadania”.

Os que não conseguem permanecer nos locais são observados pela secretaria de assistência social, assim como os que sofrem com o abuso de substâncias psicoativas e problemas psiquiátricos. A dinâmica migração da população de rua sustenta a ideia na secretaria de que não aumenta a quantidade de gente em situação de rua na cidade. Para a secretária Micali, no vai e vem "o número de pessoas em situação de rua permanece o mesmo, temos muita rotatividade de pessoas que passam por Londrina”.

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| Foto: Roberto Custódio

Um dos sintomas perceptíveis em Londrina é o aumento das residencias provisórias, chamados de mocós. Geralmente são espaços abandonados que se tornam uma espécie de refúgio do sol forte, da chuva, frio e muitas vezes da violência física e humilhação.

Esses lugares são uma opção de hospedagem de risco, onde além das mazelas por falta de higiene e perigo, as pessoas em situação de rua são possíveis vítimas de traficantes que usam da escassez para "formar vendedores" ou usuários em suas redes. A circunstância gera ainda mais insegurança com o seu patrimônio e relação com os clientes social para os dois lados desta moeda: os vulneráveis e os comerciantes. “Hoje, os maiores mocós, por exemplo, em sua maioria não são de pessoas que permanecem no local, mas sim de pessoas que acessam esses locais para comprar droga [...] É preciso ter o mapeamento dos pontos de tráfico e combatê-los, igualmente os receptores que compram os fios furtados, esse não é um mapeamento de vulnerabilidades e sim de tráfico e transgressões penais”, ressalta Micali.

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| Foto: Rafael Machado/Arquivo Folha

“MAIS TARDE EU VOU FURTAR”

Seja em becos, vielas, nas calçadas de bairros tranquilos ou avenidas movimentadas é notório a urgência da resolução de um problema que não é simples, o abandono e a falta de acesso às necessidades básicas no dia a dia, não ter a presença bem vinda em estabelecimentos públicos para o uso de um sanitário, a fome e a falta de proteção e ainda na maioria dos casos, serem vistos como delinquentes, “Muitos não praticam crimes, mas os que chegam em situação de abstinência e que vai ter que procurar um jeito de comprar a pedra [de crack], que é a droga mais severa, ele vai ter que furtar. Só que na hora da abordagem, olha a que ponto chegamos, este indivíduo fala, ‘olha seu Villa, eu sou morador de rua, sou dependente químico e mais tarde eu vou furtar’. E isso, não pode, segundo a lei, ser um motivo que sustente na condução de alguém para a prisão”, conta o Tenente Coronel.

SEGURANDO AS RÉDEAS DE SUAS HISTÓRIAS

Alguns iniciam uma tentativa de guinada ainda nas ruas em busca por uma nova vida. Começam com a venda de gomas e biscoitos de forma autônoma, porém fica evidente que não é uma tarefa fácil ser resistente. Para o Tenente Coronel Villa esse problema é ainda mais profundo, “Nós temos um problema social na origem que é o aumento nítido do número de pessoas em situação de rua, muitas delas provenientes de fora da cidade e do estado, isso, associado a um problema de saúde que é a drogadição. Para prover o sustento da drogadição a pessoa acaba se compelindo a prática do furto para obter um certo valor, por isso eu não criminalizo as pessoas em situação de rua”.

Além de todos os riscos vividos diariamente nas calçadas, a dor do abandono tem as consequências sérias para a saúde mental tornando ainda mais denso o problema do abuso de drogas entre as pessoas em situação de rua.

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Para quem se encontra em dependência química a atuação do COMAD, (Conselho Municipal de Políticas sobre Álcool e Drogas), trabalha em parceria com o Centro POP no direcionamento de usuários para atendimento em acompanhamento ambulatorial e abrigos. “A população de rua se enquadra na Assistência Social no qual encaminham seus usuários para atendimentos e tratamento para a Dependência Química. São realizadas palestras e conscientização sobre os efeitos e malefícios do álcool e drogas”, conta Marilena Jordão Pescuma, Presidente do COMAD.

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| Foto: Isaac Fontana/Framephoto/Folhapress

MOCÓS

Londrina ainda precisa registrar o número exato dos mocós pela cidade. Os espaços são observados pela GM (Guarda Municipal de Londrina) ao longo do dia, mas a noite ficam sem cuidados e oferecem mais ameaças para quem escolhe esses cantos para dormir.

Relatos de casos de estupro, abusos contra vulneráveis, tráfico de drogas, entre outras ocorrências, que reforçam ainda mais a necesidade de uma ação imediatida de sanear esses ambientes, “Quando você tem prédios abandonados por seus proprietários, ele vai acabar servindo de mocó e essa situação se repete por toda a cidade de Londrina, então você tem vários núcleos em que essas pessoas sem teto acabam se instalando e, não que todas as pessoas em situação de rua ou que mora em mocós pratiquem crimes, mas boa parte são reincidentes, há a impressão que todos praticam crimes, mas não é, são sempre os mesmos”, diz o Tenente Coronel.

O Tenente e Chefe do setor de comunicação social do 5º Batalhão de Polícia Militar, Marcos Paulo Rodrigues, 31, vê os locais como sintomas, e conta sobre a ronda que a PM faz durante a noite para amenizar a sensação de insegurança. “Os policiais trabalham em regime de escala, então todos os que compõem a companhia de radiopatrulha no decorrer de determinado ciclo, no período noturno, realizam essas rondas [...] Rotineiramente a polícia militar realiza abordagens diárias, das quais visamos localizar entorpecentes, armas que costumeiramente são apreendidos com pessoas que realizam crimes, não só em mocós”.

Se está na rua é responsabilidade de quem?

Alguns rostos já são conhecidos, cumprimentam todos os dias e conversam sobre a situação do time com os moradores da vizinhança e recebem um café na padaria do bairro, essa população que está nas ruas também cria personagens que não oferecem medo, são acolhidos na rotina de uma comunidade e, nesses casos, as assistências podem ganhar aliados para que esses indivíduos passem a ser enxergados com mais dignidade, um incentivo da sociedade para que eles progridam para um lugar melhor e seguro.

A psicóloga Joice Pacheco, 45, é atuante com pessoas em situação de rua, exemplifica que esse estado de desamparo social pode parecer dividir a sociedade, mas que ao fim não é só a moradia que diferencia uma vida, “As pessoas vivem nas ruas, mas elas têm uma vida, têm um local que frequentam, amigos, a loja ou o restaurante que fornecem alimento, onde tomam banho, essa rede de proteção e de suporte para essa população existe. Então eles têm uma vida, essa reconstrução de uma outra forma a partir de um local domiciliado é o que nos difere dessas pessoas. Ter uma casa não quer dizer que você é mais saudável do que quem não tem uma casa”, afirma a psicóloga.

Quem olha de dentro das janelas e vê um corpo exposto em espaços públicos, nem sempre enxerga todas as circunstâncias e histórias que estão por trás dessa permanência. A assistência busca estancar e minimizar um problema social que nasce dentro dos ambientes privados, dentro de famílias e relações que em algum momento se desfizeram e de forma trágica, até que ponto toda uma estrutura de relações também fomentam o aumento da população em situação de rua?

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| Foto: Isaac Fontana/Framephoto/Folhapress

Pessoas que são expulsas por suas orientação sexual, problemas com dependência química entre outros casos, quando isso se mistura há uma classe social baixa e pouco acesso a oportunidades de emprego com uma remuneração financeira para suprir o básico de contas mensais, acaba originando situações às vezes irreversíveis. Nesses momentos, quando a assistência chega “tarde demais”, a polícia pode ser uma solução, mas que não resolve o que é necessário com a sua visão mais objetiva, “A polícia não é um órgão de assistência, é um órgão de prevenção criminal, então quando ela faz abordagem ela vê por esse lado. Tem crack ou não tem? Tem cocaína ou não tem? Tem droga? Quem é o traficante? Isso cria nas pessoas que estão dentro do mocó um receio de serem presas, e é claro que os traficantes, já que eles veem naquela população vulnerável os seus potenciais consumidores de entorpecente, eles querem a polícia o mais longe possível”.

A população de rua está vulnerável muito antes de não ter um teto, há certos interesses em situações que lucram com a miséria e dificulta o acesso da assistência para levar ajuda para esses indivíduos, o tráfico se fortalece nesses pontos atraindo quem está à mercê da sorte. São necessários mais incentivos e informações sobre essa situação, também não encontramos uma estrutura que ensine a sociedade a lidar de forma coerente com essa essa mazela que assombra toda a cidade, até mesmo o estado pode sofrer ao tentar intervir, o que é radicalmente enfrentado, segundo o Tenente Villa, “A partir do momento em que o estado, seja ele em qualquer que seja o nível, começa a pedir para o traficante para ingressar em certo lugar, nós estamos reconhecendo aqui a falência estatal. Você não pode pedir permissão para criminosos para combater o crime, você não pode pedir permissão para criminosos para levar saúde às pessoas”.


EXPEDIENTE

ESPECIAL TRANSMÍDIA - A INVISÍVEL VIDA NAS RUAS DE LONDRINA

UMA REPORTAGEM DE DOUGLAS KUSPIOSZ E ANA CARLA DIAS - ESPECIAL PARA A FOLHA

EDIÇÃO: PATRÍCIA MARIA ALVES

FOTOGRAFIA: DOUGLAS KUSPIOSZ, GUSTAVO CARNEIRO, ROBERTO CUSTÓDIO E ISAAC FONTANA

COORDENAÇÃO GERAL: ADRIANA DE CUNTO


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