A reportagem apontou que muitos dos depoimentos nas redes sociais descrevem que os sonhos são povoados por pessoas bem conhecidas: às vezes são membros da família, outras vezes são amigos do trabalho ou da faculdade. Questionada se há uma correlação para que isso ocorra, a professora de psicologia da Unifil, Giselli Gonçalves disse que para responder a esta pergunta é necessário entender o que é um sonho. “Esta resposta é diferente para cada teórico da psicologia. Sigo a abordagem fundamentada na obra de Carl Gustav Jung. Para ele, o sonho tem a função de trazer alguma mensagem à consciência, no sentido de compensar atitudes unilaterais do sonhador, que precisam ser revistas.”

Pintura sobre tela "Hipnos e Tânato" de 1874 por John William Waterhouse
Pintura sobre tela "Hipnos e Tânato" de 1874 por John William Waterhouse | Foto: Wiki Creative Commons

Para Jung, diz ela, o sonho não é uma realização disfarçada de um desejo. “Jung achava que a psique não tem esse compromisso diplomático de ‘disfarçar’ um desejo. Para ele, o sonho não esconde, mas revela. O problema é que precisamos interpretar pois, como já disse, ele revela em linguagem diferente do que estamos habituados, pois o inconsciente não fala o mesmo idioma que a consciência.” Ela explica que é como se, no inconsciente, existisse uma consciência superior, uma espécie de sabedoria que, quando vê que algo na consciência que precisa ser corrigido, manda uma “mensagem”, no sentido de proporcionar alguma espécie de reorientação para o sujeito. “Entretanto, a linguagem da consciência é racional, dirigida, objetiva, lógica, é a linguagem do nosso intelecto. A linguagem do inconsciente é exclusivamente formada por imagens carregadas de emoções, ou seja, uma outra língua, por isto, muitas vezes as imagens não são compreendidas pela consciência racional. É necessário haver um esforço de interpretação para compreender as imagens sonhadas e, na clínica, chamamos este procedimento de amplificação simbólica. Por meio dele, as imagens são trazidas para alguma forma de entendimento racional, que nunca será completo, pois o conteúdo dos símbolos provindos do inconsciente nunca se esgota.”

icon-aspas “Não moldamos o inconsciente. Ele nos molda, ele ajuda nosso desenvolvimento"

Quando alguém começa seu processo terapêutico, ela pede que faça um caderno de anotação de seus sonhos e que o leve à terapia. “Interpretado, o sonho é farol que anuncia o caminho por onde o processo deve seguir. O trabalho com as imagens psíquicas é central na clínica junguiana”, explicou.

O esquecimento dos sonhos ao acordar

A professora Giselli Gonçalves ressalta que é normal a pessoa esquecer os sonhos assim que acorda. “Ou a psique não precisa mais destas imagens – ao serem experimentadas em sonho, mesmo sem serem lembradas, já cumpriram sua função na restituição do equilíbrio anímico – ou a pessoa tem resistência a lidar com elas, e as reprime. O que sempre digo aos pacientes é que, quanto maior o esforço para lembrar-se dos sonhos, mais lembraremos deles. Se uma pessoa adota o hábito de anotá-los, progressivamente vai se lembrando mais destas imagens.”
Carl Jung
Carl Jung | Foto: Wiki Creative Commons

"O inconsciente fala por meio de imagens"

A professora Gonçalves reforça que o inconsciente não fala por meio de conceitos racionais, e sim por meio de imagens. “Ele se aproveita dos resquícios de memória armazenados na consciência do sonhador para passar sua mensagem. A interpretação se dá no nível do sujeito e do nível do objeto. No nível do objeto, quando sonho com uma colega que considero egoísta, o sonho pode estar se referindo a esta colega mesmo, à minha forma de lidar com o egoísmo dos outros. Ou então, no nível do sujeito, o inconsciente está querendo representar o egoísmo presente em mim, de alguma forma. Neste caso, quando sonho com o chefe autoritário, o inconsciente está representando o meu próprio autoritarismo. Ele se utiliza dessas representações, pois ele não fala por meio de conceitos, e sim de alegorias. Todos os elementos do sonho são expressões de aspectos do próprio sonhador.” Para Gonçalves, o importante é saber que o sonho sempre é uma mensagem. “Vem cifrada, mas é uma mensagem que nunca pode ser desprezada. Mas ela requer uma interpretação para ser compreendida.”

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Ela explica que o sonho é pessoal e só pode ser interpretado de acordo com o contexto do próprio sonhador. “Estipular qualquer regra de interpretação, de minha parte, seria um equívoco. Não dá para generalizar. Mas o que é possível afirmar, com certeza, é que o sonho tem uma mensagem, um propósito, mas este é apresentado em linguagem cifrada, utilizando-se das referências que estão presentes na consciência. E, ultimamente, nossa consciência está permanentemente em contato com imagens que dizem respeito ao isolamento, ou ao desejo de estarmos em contato. Então, os sonhos se utilizarão destas imagens para expressar suas metáforas.” Ao ser indagada se existem pessoas que projetam em seus sonhos algumas cenas que assistiram em filmes ou séries, Gonçalves diz que é muito comum, pois estas imagens que ficam na memória são o material que o inconsciente aproveita para se expressar. “Ele vai usar sempre o que está disponível na consciência para dar seu recado. Como sempre, é necessário interpretar a mensagem, que estará cifrada.”

"Vivências oníricas de contato no isolamento"

Ela ressalva que em alguns casos, sim, podem ser um processo de compensação, já que as pessoas estão isoladas, com contato reduzido. “Um dos propósitos do sonho é restaurar o equilíbrio psíquico. E, de acordo com o pressuposto da realidade psíquica, ter vivenciado algo por meio de imagens tem, para a psique, o mesmo efeito de ter realizado em ato. Ou seja, se uma pessoa se sente desamparada, sonhar que está sendo acalentada em um colo amoroso tem o efeito de realmente ter sido, objetivamente, acalentada. Então, a psique pode lançar mão deste recurso, sim.” Gonçalves destaca que muitas vezes, a carência de contato pode ser compensada com vivências oníricas de contato. “Se o sujeito acorda sentindo que está melhor, mais acalentado, neste caso, o sonho cumpriu seu propósito.”
Pintura sobre tela "O Bocejo" auto retrato de Joseph Ducreux de 1783
Pintura sobre tela "O Bocejo" auto retrato de Joseph Ducreux de 1783 | Foto: Google Arts: Creative Commons

"Pesadelos são menos sutis para atrair a atenção da consciência"

Sobre o possível significado de um sonho violento, ela diz que nunca se diz que uma situação “é” isto ou aquilo. “O sonho sempre precisa ser analisado do ponto de vista do sonhador. Não há uma regra. Estes sonhos mais impactantes também ocorrem em períodos em que não existe pandemia. Sempre consistem em mensagens do inconsciente. Quando a mensagem a ser integrada é importante e o sonhador não costuma dar muita abertura para a psique se expressar, o inconsciente costuma se utilizar de imagens menos sutis, pois elas costumam atrair a atenção da consciência de forma mais efetiva.”

icon-aspas "(Carl) Jung achava que a psique não tem esse compromisso diplomático de ‘disfarçar’ um desejo. Para ele, o sonho não esconde, mas revela"

Ela expõe que os pesadelos são tentativas que o inconsciente faz para que a consciência integre alguma coisa que lhe falta. “Sugiro buscar ajuda para a interpretação das mensagens oníricas. Neste caso, o indicado é procurar um psicólogo, pois no processo terapêutico estas imagens serão trabalhadas e o sujeito poderá lidar com elas com menos angústia. Dar a elas um sentido as torna menos aversivas. Sempre que damos lugar às imagens que produzimos elas deixam de ser consideradas como ‘problema’ e passam a nos ajudar a compreender algo em nós.” Quanto à ansiedade, ela também recomenda procurar um psicólogo, para averiguar as causas do problema e como lidar com ele. “Dependendo do caso, o psicólogo pode encaminhar ao psiquiatra para fazer um tratamento conjunto.”

"O inconsciente nos molda e ajuda nosso desenvolvimento"

Ela explica que não são as pessoas que moldam o sonho. “Não moldamos o inconsciente. Ele nos molda, ele ajuda nosso desenvolvimento. Ele contém um saber que ignoramos e que, uma vez integrado, cooperará para nossa inteireza psíquica. O inconsciente é a fonte inesgotável de desenvolvimento da consciência. Embora a linguagem inconsciente nos seja de difícil compreensão, o diálogo é desejável e inevitável. O inconsciente é uma mãe criadora de onde tudo jorra. A verdade de nossa alma está escrita ali. Por isso, não adianta procurarmos preenchimento, felicidade e completude em objetos externos, em coisas.”, afirma a psicóloga. “Como diz o Jung, apenas aquilo que uma pessoa realmente é tem o poder de curá-la. Ou seja, nosso remédio psíquico está dentro de nós. Basta que saibamos escutar a mensagem. Nossas verdades internas, nossa essência, nossa missão de vida, tudo está escrito ali. No inconsciente está o potencial que trazemos para nos desenvolvermos, como a semente guarda em si o potencial e a informação da árvore que ela está destinada a ser. A consciência precisa ajudar essa semente a germinar e exteriorizar seu potencial. Os sonhos estarão sempre tentando ajudar neste sentido.” Uma das maiores dificuldades neste momento de crise é como lidar com a ansiedade e melhorar a qualidade do sono, para que as pessoas não tenham pesadelos. Gonçalves aponta que existem muitos métodos e estes têm que ser adaptados às características de cada pessoa. “Alguns gostam de técnicas de relaxamento, outros gostam de meditações, e estas podem inclusive ser encontradas na internet, no Youtube mesmo. Podem ser feitas antes de dormir pois realmente relaxam a mente e isto influencia o corpo. O corpo responde diretamente ao que acontece na psique.”

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Galatea das Esferas 1952/ Salvador Dalí
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