“Corra para as colinas! Corra por sua vida” clama o som da banda Iron Maiden. A música “Run to the hills” de 1982, faz alusão à invasão das terras indígenas (“peles vermelhas”) pelos colonizadores (homem branco) e o contra-ataque do povo nativo. Quando, ou onde essa expressão primeiro tenha ganhado seu contorno mainstream de ditado popular, não se sabe, mas já foi referência em filmes, peças de teatros e desenhos animados.

A primeira vez que eu ouvi a expressão foi em um episódio clássico da personagem de Walter Lantz, o Pica-Pau. Na web, seara da cultura popular contemporânea, a expressão virou ‘meme’ ao ser encontrada na fala de Fred, o fazendeiro no jogo de 1998, The RuneScapes e sem dúvidas já faz parte do imaginário coletivo: Corra para as colinas, montanhas, em busca de proteção. Tanto que a primeira coisa que se pensa quando uma pandemia atinge grandes centros urbanos é... exato: “Marília de Dirceu” de Tomaz Antônio Gonzaga e os conceitos arcádicos: “Entra nesta grande terra, passa uma formosa ponte, passa a segunda, a terceira, tem um palácio defronte. Ele tem ao pé da porta uma rasgada janela, é da sala, aonde assiste a minha Marília bela”.

O “fugere urbem” é natural de artes que clamam pelo bucolismo, pelas maravilhas do campo como o arcadismo e classicismo. E assim como Tomáz, Camões, Boccaccio com os ilustres “quarenteners” de Decameron, a personagem Jacinto de “As cidades e a serra” de Eça de Queiroz, dá a ordem: Fuja da cidade!

Imagem ilustrativa da imagem Corra para as colinas!  Pandemia da Covid-19 causa fenômeno de migração urbana
| Foto: Roberto Custódio

Fugere urbem : Em busca da “paz” no interior

A fuga da cidade para os distritos rurais de Londrina é o fenômeno recente mais próximo deste resgate bucólico. Com o intuito de evitar a contaminação pelo coronavírus o êxodo urbano é uma inversão de um outro comportamento que se intensifica nas últimas décadas que é o êxodo rural. A saída em massa dos trabalhadores do campo em busca de uma vida melhor nos grandes centros urbanos. Conforme o último censo do IBGE, no ano de 2010, o Paraná já havia perdido 13% de sua população rural para a propaganda de que a vida é melhor nas cidades. Mesmo com a intensidade do passar das horas, dos trabalhos árduos e incessantes, da pobreza, dos asfaltos, das luzes, dos carros. Mesmo com a poluição sonora, visual, auditiva, da água, da terra e do ar, da insalubridade do modo de produção e da vida. E se transformou em um grande problema social e econômico na atualidade.

Quando da época que fui em busca de histórias para a reportagem Especial Transmídia (“Estamos na era da madeira?”) publicada em fevereiro de 2020, uma das grandes preocupações que tangenciava o assunto era que, no futuro, o meio rural se transformasse em um grande deserto verde. Consternado, quem ainda estava na lida da agricultura familiar, via se exaurir a mão de obra. Os pequenos proprietários de terras cediam ao arrendamento para cuidar com mais “qualidade de vida” de sua família na cidade, “mais oportunidades”, diziam. Assombrava, prefeitos de pequenas cidades, o esvaziamento das áreas e o surgimento dos vazios demográficos resumidos nas cidades fantasmas. Nessa ocasião, de baixa valorização dos espaços rurais parecia um demérito escolher viver no campo; até que um vírus mudou essa perspectiva, mesmo que temporariamente, inverteu essa lógica.

Guairacá
Guairacá | Foto: Gustavo Carneiro

A ideia de que essa inversão seja significativa pode ser chamada de ‘utópica e exageradamente otimista”, mas não na fala dos moradores de Guairacá, Paiquerê e Irerê. Muitos nascidos e criados no ambiente simples do campo, passaram suas vidas a viver do que a terra ‘dá’ e se demonstram chateados ao dizer que famílias vizinhas foram embora para a cidade. É como um pesar, não por um ou por outro motivo de rumo, mas pela ausência e saudade do se conviver. O sorriso aparece no instante que se lembra que com a pandemia muitos voltaram. Aí sim vem o veredito, “aqui é melhor” e se percebe a alegria na esperança de que a evasão social (e financeira), que há tempos privilegia a cidade em detrimento do campo, se estanque.

Paiquerê
Paiquerê | Foto: Gustavo Carneiro

Assim eles se entusiasmam no especial “Salvos pelo isolamento natural” (na edição deste FDS) com as mais de trinta famílias que voltaram a viver entre eles e que estão a incentivar a economia local - “Eles gastam aqui, agora, o que gastavam na cidade”.

Esses forasteiros não são considerados moradores, não se sabe o nome deles, nem se cumprimentam por apelidos carinhosos como aos amigos que repartem horas de convivência. A eles se dá a prosa para se saber a que vieram, o que buscam. A resposta vem fácil para os ali decidiram se aquietar na vida e criados no ambiente do sítio, na vida simples da roça não têm dúvidas do porquê dessa escolha, que é? ...Mais uma vez corretíssimo o leitor esperto que logo disse “para sugar todo o tutano da vida”. O escritor, poeta e filósofo estadunidense Henry David Thoreau, quando desiludido e desacorçoado com a sociedade de sua época, isolou-se nos bosques, descreveu sua experiência como assim escreveriam, quicá, os forasteiros refugiados em Guairacá, Paiquerê e Irerê: “Fui para os bosques viver de livre vontade, para sugar todo o tutano da vida, para aniquilar tudo o que não era vida, e para, quando morrer, não descobrir que não vivi!” (Walden ou A vida nos bosques de 1854).

Guairacá
Guairacá | Foto: Gustavo Carneiro

Pergunto às pessoas o que elas mais gostam de fazer e de resposta vem “Eu gosto de pescar, meu filho gostava de jogar futebol, mas deu uma parada nessa hora”, de outro morador escuto que passar tempo com a família, prosear faz parte da sua diversão, “as crianças gostam disso” e aponta a bicicleta com três rodinhas atrás levantando poeira na terra “de chão”. A visita aos vizinhos se rarefez, assim como passatempos mais “radicais” para os dias de hoje, jogar carteado na praça da matriz. “O pessoal que veio para cá só sai se for para ir ao mercado, ou para voltar para a cidade”, conta outro em forma de observação antropológica.

Guairacá
Guairacá | Foto: Gustavo Carneiro

“Eles vieram por causa do medo”

A realidade do século atual não é tão poética como será traduzida, quem sabe num futuro próximo, pelos poetas da quarentena e do isolamento compulsório de 2020. Esses que experienciam outras formas de viver e isolar-se nesse momento da coexistência entre “caos” e tédio. Aulas de ioga, trabalhos manuais e artísticos, cursos, novos idiomas, novos autores, novas receitas, uma nova safra de humanos que sabem apreciar tanto a solidão, sua própria companhia como curtir “ao vivo” on-line o show de “Bruno e Marrone”, Rolling Stones ou de Sandy e Jr.

Live da dupla sertaneja Bruno e Marrone foi uma das mais assistidas e esteve entre os assuntos mais comentados na web
Live da dupla sertaneja Bruno e Marrone foi uma das mais assistidas e esteve entre os assuntos mais comentados na web | Foto: Anderson Lira/FramePhoto/Folhapress

A situação de emergência, no entanto, não impactou a todos de modo tão positivo. O que impele ao êxodo urbano em pleno abril de 2020 é medo e insegurança. “O que nós temos (no campo) em vantagem em relação à cidade é a distância”, ouço em plantação de vassouras no distrito de Guairacá. E parece que existe mesmo uma barreira que protege aquele povo do perigo invisível do coronavírus e ela se sustenta nesse argumento.

O cantor Ney Matogrosso, aos 79 anos, também optou por fugir da cidade, e como ele mesmo conta, em entrevista à Revista Exame (26/03), para o vírus chegar até ele terá que fazer uma longa jornada até seu lugar de isolamento. Assim, parece crer os que escolheram partir para os distritos da região. Alguns já voltaram para a cidade, por causa da dengue e da reabertura do comércio, mas muitos ainda se isolam por lá.

Cantor durante show  "Bloco na Rua". Agenda da turnê foi cancelada por causa da pandemia do coronavírus
Cantor durante show "Bloco na Rua". Agenda da turnê foi cancelada por causa da pandemia do coronavírus | Foto: Jéssica Marinho/Folhapress

Esse fenômeno migratório não é exclusividade da região de Londrina. Na Itália, quando foi decretada a quarentena, muitos foram os que fugiram para as cidades menores, mas era tarde e acabaram por espalhar o vírus por todo o território. Na França, centenas de parisienses fugiram para os oásis de paz e tranquilidade na semana do decreto de quarentena e os casos de Covid-19 foram juntos.

Abobo, distrito de Abidjan na África
Abobo, distrito de Abidjan na África | Foto: AFP

Na índia, o êxodo foi da parcela mais pobre da população. Milhões de trabalhadores autônomos desempregados, começaram a migrar de volta às vilas de origem no interior, centenas de quilômetros a pé.

Na África, mesmo o continente sendo o menos atingido pela pandemia até o momento, países que adotaram medidas de isolamento também já observam a fuga para a zona rural. A justificativa, além da “segurança biológica”, é de que a terra onde se trabalha dá alimento, esperar pelo fim da quarentena, no asfalto da cidade, mata de fome.

Checagem policial em Allahabad, Índia.
Checagem policial em Allahabad, Índia. | Foto: AFP

Aqui, o perigo desse movimento migratório é que se o forasteiro ir e vir da cidade, para seu refúgio nos distritos, sem cuidados, pode carregar consigo o vírus.

Acampamento improvisado para os trabalhadores que migravam para suas vilas de origem após a imposição do isolamento como medida de prevenção à Covid-19 no estado Maharashtra na Índia
Acampamento improvisado para os trabalhadores que migravam para suas vilas de origem após a imposição do isolamento como medida de prevenção à Covid-19 no estado Maharashtra na Índia | Foto: AFP

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