O que fazer durante o isolamento social no meio de uma pandemia? Uma possível resposta a essa indagação foi oferecida pelo escritor italiano Giovanni Boccaccio no século 14: contar histórias. Nada mais do que falar ao outro. Nada mais do que ouvir o outro.

Entre os anos de 1348 e 1353, Boccaccio escreveu um livro que se tornaria um clássico da literatura universal: “Decameron” (ou “Decamerão”). Narrava a história de um grupo de pessoas que, vendo a pandemia da peste negra assolar a cidade de Florença, na Itália, resolve se isolar numa afastada residência rural. Na época o mundo vivia aquela que é considerada a maior das pandemias – responsável por dizimar entre 100 e 200 milhões de pessoas.

A ideia do isolamento, como forma de evitar o contágio e a propagação da doença, parte da iniciativa de sete mulheres: Pampinéia, Fiammetta, Filomena, Emília, Laurinha, Neífile e Elisa. A elas se juntam, ao acaso, três homens: Pânfilo, Filóstrato e Dionéio. Os nomes podem parecer estranhos para os dias atuais, mas não para a Idade Média.

Isolados na residência, para passar o tempo decidem que cada um deve contar ao grupo uma história por dia. Assim surgem dez histórias narradas por dia. Ao longo dos dez dias que dura o confinamento, são contadas ao todo 100 histórias. O próprio título da obra, “Decameron” se origina dos termos gregos “deka”, que significa “dez”, e “hemera”, que significa “dia”.

Chamadas de “novelas” por Boccaccio (1313 – 1375), as narrativas tocam em variadas abordagens e assuntos que envolvem dramas, tragédias, comicidades, sagacidades e lições de vida. Mas são, em sua grande maioria, histórias de amor. Há a moral presente, mas também a sensualidade e o erotismo. Há também o ímpeto de deixar de lado as concepções do universo divino para tratar das realidades humanas.

Imagem ilustrativa da imagem Histórias de isolamento

O preâmbulo de “Decameron” traz um dos retratos documentais mais realistas da peste negra. Como a obra foi escrita logo após o fim da pandemia, traz um teor testemunhal. Retrata também a comportamento das pessoas em isolamento social. Boccaccio as divide em dois grupos básicos. De um lado os hedonistas que se entregam aos prazeres da vida. De outro lado aqueles que se dedicam ao ascetismo em busca do caminho espiritual.

Uma das grandes originalidades de “Decameron” está em colocar, pela primeira vez na história da prosa ocidental, a mulher em um mesmo pé de igualdades que os homens. Algo polêmico para o século 14. Nas 100 histórias contadas por Boccaccio, as mulheres possuem os mesmos direitos que os homens de viverem a liberdade e o amor. Mulheres que exercem escolhas e possuem voz, algo improvável na Idade Média.

Mas isso tudo não impede Boccaccio de colocar na boca da personagem mais nova, Elisa, a seguinte frase: “São os homens a cabeça das mulheres; sem a ordem deles, raramente chega alguma obra nossa a um fim digno de elogio.” No final de tudo, o autor procura justificar e amenizar o teor realista de sua narrativa: “É possível, talvez, que alguma de vocês afirme que eu, escrevendo tais novelas, usei excessiva liberdade; esta liberdade consistiu, por exemplo, em levar as mulheres, de vez em quando, a dizer, e com mais frequência a escutar, coisas que não são as mais convenientes de serem ditas, ou até de serem ouvidas, por mulheres honestas.”

Filho de um rico mercador, Boccaccio nasceu em 1313 e desde jovem se dedicou à literatura. Escrevia tanto em dialeto toscano quanto em latim. Deixou dezenas de obras, mas foi imortalizado por “Decameron”. Admirador da literatura de Dante Alighieri (1265 – 1321), foi o responsável pela introdução da palavra “divina” ao título de “Divina Comédia”. Dante nomeou o clássico apenas de “Comédia”, Boccaccio foi lá e acrescentou “Divina”.

No Brasil existem várias edições de “Decameron” publicadas em diferentes épocas por editoras como Abril, Ediouro, Nova Fronteira, L&PM, Cosac Naify e Nova Cultural, entre outras. Todas esgotadas, disponíveis apenas em sebos e bibliotecas.