Aos olhos de hoje, nossas infâncias foram uma verdadeira temeridade! Andávamos descalços e sem camisas o dia todo, nos banhávamos em córregos que jamais sonharíamos saber a procedência e o percurso que estas águas faziam, tomávamos vacinas com aqueles “revólveres” que hoje se assemelham aos utilizados para vacinar gado. Pegávamos caxumba, impinge, piolho, bicho de pé...sarampo e nada nos derrubava tão fácil! As canelas viviam sempre raladas e difícil uma parte do corpo onde não havia um machucado ou uma cicatriz.

Imagem ilustrativa da imagem DEDO DE PROSA - Ovos quebradinhos
| Foto: Marco Jacobsen

Nossas refeições eram parcas e dependendo da pressa que tínhamos para retornar à ruas, engolíamos rapidamente o que tinha pela frente. Às vezes era um simples prato de arroz branco com uns pedações de mortadela temperados somente com limão para dar mais gosto e aplacar a fome.

Não havia luxo em nossas vestimentas e tampouco nos raros calçados que tínhamos. As chinelas às vezes atrapalhavam certas brincadeiras, por isso as dispensávamos e preferíamos andar sempre descalços. Para o futebol ganhávamos um tênis preto, que deveria durar o ano todo, com oito grossos cravos no solado e um cadarço demasiadamente grande para a simples função de aperta-lo ao pé! Eram necessárias duas, três voltas na canela para depois dar o nó definitivo...

Passávamos o dia inteiro de rua em rua ocupados com as mais diversas brincadeiras: mãe-da-rua, bets, futebol, empinar pipas , carrinhos de rolemã - que vez ou outra precisavam de umas gotas de xixi para voltarem a funcionar- “salva”, burquinhas com batatões e “carambolas”... só voltávamos pra casa quando principiava a noite ou ao ouvir de longe nossas mães gritando: “fulano, vem pra casa tomar banho!”

Vez ou outra nossas mães nos incumbiam de ir até uma granja próxima de nosso bairro para comprar ovos e galinhas a preços melhores dos que os praticado nos mercados. Com velhos caldeirões nas mãos saíamos em grupo de três, quatro, cinco “moleques” atravessando algumas chácaras até chegar ao destino. “Tem ovos quebrados?” perguntávamos aos funcionários. Trazíamos aqueles recipientes lotados de ovos que tinham pequenos trincados, o que os tornavam mais baratos.

Comprávamos também algumas galinhas vivas, trazidas amarradas pelos pés e dependuradas em cabos de vassouras até chegarmos em casa. Pobres galinhas! Certamente eram aquelas mais velhas que já não produziam tantos ovos quanto deveriam e eram “descartadas” pelos avicultores.

Havia todo um ritual para matar tais galinhas em casa: água fervendo, pequeno fogareiro feito com restos de pés de café derrubados que mamãe fazia um estoque deles. Depois do destroncamento, a galinha era colocada de cabeça para baixo para que o sangue acumulasse no pescoço... Mergulhada em água fervente as penas eram retiras uma a uma ficando apenas algumas penugens que eram ligeiramente sapecadas ao fogo.

Com uma faca afiada, as vísceras eram retiradas e ficávamos à espreita para ver se haviam pequenos ovinhos ainda em formação em seu interior. Cozidos, apresentavam uma coloração alaranjada que nos saltavam aos olhos e assanhavam até as mais tímidas lombrigas. Mamãe os temperava e dividida de forma igualitária para que não houvesse brigas. Igualmente disputávamos a moela e um pedaço da carcaça que continha uma espécie “forquilha”. Quebrada com alguém mais próximo dava sinal de sorte para quem ficasse com a parte maior do osso! Coisas da infância!

Com novos métodos comerciais de criação em série de animais, não é mais possível encontrar esta delícia culinária, a menos que você conheça alguém que venda galinha caipira a e tenha a sorte de encontrar esta iguaria do nosso tempo de nossa infância!

Valdinei Franco é leitor da FOLHA

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