Quando a caloura de artes visuais Elke Coelho chegou no campus da UEL (Universidade Estadual de Londrina) para fazer a matrícula, não entendia o que estava acontecendo e o seu espanto foi grande. A própria ideia de frequentar um curso superior ainda era muito abstrata, já que ela é a primeira da sua família a ter um diploma universitário. A sua mãe, até hoje tem dificuldade de explicar para as vizinhas de Junqueirópolis, no interior de São Paulo, que tem uma filha doutora ‘de outro tipo’, que não é médica e faz arte.

A professora Elke Coelho  chegou a Londrina 11 anos atrás para estudar artes visuais:  “Ainda hoje a UEL me deixa encantada”
A professora Elke Coelho chegou a Londrina 11 anos atrás para estudar artes visuais: “Ainda hoje a UEL me deixa encantada” | Foto: Roberto Custódio

“Ainda hoje a UEL me deixa encantada”, diz. “Antes da pandemia, a considerava como uma segunda casa, mas hoje sei que é a minha primeira casa. Onde eu passava muito tempo, às vezes voltando para Casa do Estudante às onze da noite quando estudava e hoje, para onde eu costumava ir a qualquer hora do dia ou da semana”, lembra.

Há 11 anos, Elke é professora do Departamento de Artes Visuais da UEL, tem especialização em Literatura Brasileira, mestrado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutorado pela Escola de Comunicações e Artes da USP (Universidade de São Paulo). Como artista, já participou de exposições coletivas e individuais no Brasil e exterior.

Moradora da Casa do Estudante no tempo que o imóvel ainda ficava na Avenida JK, Elke acabou encontrando na estrutura da própria universidade os meios necessários para chegar até o dia da formatura, quando foi nome de turma. “Eu procurava ocupar o meu tempo da melhor maneira, passava a maior parte dele na universidade porque a Casa do Estudante era difícil, haviam muitos problemas, inclusive de segurança. Participei de muito projetos de extensão, cursos, disciplinas eletivas, das aulas no laboratório de línguas. Como moradora da Casa do Estudante eu pagava menos da metade nas refeições do Restaurante Universitário e isso tudo me ajudava muito com as despesas e ainda me fazia descobrir atividades e possibilidades”, conta.

Para ela, a UEL é um espaço importante na formação do ser humano. “Penso em cada palestra que assisti, a cada filme, o acesso à biblioteca que eu nunca tinha visto tão grande em toda a minha vida. É o conjunto de todas essas coisas, de ordem física e imaterial como o próprio conhecimento. Eu estava deixando de reproduzir a informação, agora era capaz de processa-la para construir um pensamento, uma opinião e isso reverbera no modo de entender o mundo. Tudo me assustava e ao mesmo tempo, era tudo bonito, diferente, encantador e desafiador”, analisa.

Os 50 anos da instituição trazem um aperto no peito da professora. “Nesse universo tão grande que é a UEL, de tantas histórias, sou um grãozinho ínfimo. E talvez sejamos todos, mas isso é que faz a praia. Sendo sincera, pela primeira vez, eu tenho medo da universidade acabar. É um ente muito querido, que está passando por um momento muito delicado. Ultimamente eu só sinto medo: das coisas da vida e das coisas que podem acontecer com a universidade, dos processos políticos e financeiros, da transformação, da debilidade física que salta aos olhos, dos recursos humanos que veem diminuindo e acredito que a comunidade sabe e sente isso, de alguma forma. As perspectivas mudaram tão rapidamente. Há alguns anos, quando eu falava que atuava como docente, havia uma pré-admiração e hoje, sinto um pré-conceito. Um dialogo cansativo com sujeitos da sociedade que tentam redimensionar o que é a UEL. Existe uma rede visível e outra invisível que atua na sociedade e algumas pessoas nem sabem disso, da importância da UEL em todas as instâncias. É um patrimônio que pertence a todos e não é só físico”, desabafa.

De Moçambique para a UEL

 Nuno  Remane: "Mesmo a 15 mil km de distância, ainda me sinto o ‘amigo-africano da UEL’.. Não consigo me despedir dessa cidade”
Nuno Remane: "Mesmo a 15 mil km de distância, ainda me sinto o ‘amigo-africano da UEL’.. Não consigo me despedir dessa cidade” | Foto: Arquivo Pessoal

Essa também foi a casa do moçambicano Nuno Ibra Remane, que chegou até o campus da UEL graças a um convênio internacional. A vontade de estudar arquitetura o trouxe para Londrina no começo de 2000. Ele fala da UEL com os olhos marejados. Casa é justamente a primeira palavra que vem à sua mente, junto com tantas boas lembranças. “Eu entrava no curso pela manhã e saia do campus depois da janta. Descobri a UEL das salas de aula, dos alunos, do RU e, depois, descobri uma outra universidade que não estava nos livros: aquela dos encontros, das rodas de capoeira do calçadão, dos eventos no Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos (hoje, Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros). Conheci coisas novas até o meu último dia de UEL”, conta.

Na época, o departamento de Arquitetura era muito ativo nos projetos dos novos prédios que surgiam no campus e isso faz Remane sentir parte dessa nova UEL que estava surgindo. “Foi muito bonito isso. A UEL era um mundo à parte, era descer do ônibus e esse universo se abria diante de mim. Um espaço magico”, comenta.

Remane casou com a estudante de psicologia da Unifil Tarita Fernandes e voltou para Moçambique depois de viver Londrina intensamente, durante cinco anos. Voltou para cumprir uma das cláusulas do convênio que obrigava os estudantes a levarem para casa todo o conhecimento adquirido na experiência de estudo.

No entanto, Remane acabou levando muito mais da Universidade. “Quando eu cheguei, não tinha um senso de comunidade esclarecido. Vivia em Moçambique numa bolha, numa condição social muito privilegiada, sem enxergar verdadeiramente a realidade. Na UEL, comíamos todos juntos, estudávamos, pegávamos o mesmo transporte, dividíamos os turnos para realizar os trabalhos, éramos um conjunto. Eu aprendi na UEL a ser coletivo, eu não fui para Londrina assim, quando cheguei não tinha mais essa história do meu mundinho; as pessoas na minha turma vinham de vários lugares, com realidades distintas, estratos sociais diferentes. O conhecimento nos unia, era uma troca constante. A UEL é um espaço transformador”, completa.

Essa experiência fez com que ele, de volta a Moçambique e depois de alguns anos atuando na iniciativa privada, partisse para o trabalho voltado ao social. Como arquiteto, junto com sua equipe, é considerado um especialista no desenho de cidades; a última delas criada para 250 mil pessoas, ao redor de uma das maiores riquezas naturais do país, o gás natural.

Hoje, seu foco é mais voltado para a carreira diplomática, como diretor executivo da FAN (Fundação para a Melhoria do Ambiente de Negócios) em Moçambique, acompanhando o presidente do seu país em viagens e traçando estratégias de desenvolvimento junto aos ministros do governo. Por causa da família brasileira, as visitas por aqui são frequentes com direito a encontro com os colegas de turma. Sempre que possível, vem visitar o campus que já apresentou aos filhos.

Dois dias antes de conversar com a reportagem da FOLHA, confessou ter acessado o site da UEL na busca de um outro mestrado. “A UEL é um bastião nacional. Ao longos das minhas várias viagens pelo mundo reencontrei, por acaso, pessoas que conheci em Londrina. É cosmopolita e eu, mesmo a 15 mil km de distância, ainda me sinto o ‘amigo-africano da UEL’.. Não consigo me despedir dessa cidade”, revela.

Desafios para indígena formada em medicina

Miriam Viegas é a segunda indígena a concluir o curso de medicina, o mais concorrido dos vestibulares
Miriam Viegas é a segunda indígena a concluir o curso de medicina, o mais concorrido dos vestibulares | Foto: Arquivo Pessoal

Miriam Alessandra de Moares Viegas se formou em Medicina na Universidade Estadual de Londrina e é a segunda indígena a conseguir concluir o curso mais concorrido dos vestibulares. Ela é da etnia Guarani Nhandewa, da Terra Indígena Laranjinha, no município de Santa Amélia. Entrou para o curso em 2011. “Foi um desafio, uma quebra de tabu já que antes de mim, apenas uma outra indígena conseguiu terminar o curso. O preconceito existe desde o vestibular indígena que é diferenciado e pode parecer fácil para quem não é indígena. Fazemos a prova sem preparação, sem cursinho, sem ter estudado em escola particular, com uma formação primária precária”, conta.

Se entrar pode parecer fácil, sair com um diploma nas mãos é para guerreiros. Kunha Nemo'ã – esse é o nome de Miriam Viegas em Guarani – diz que um dos seus maiores desafios era acompanhar a turma. “Enquanto meus amigos estudavam pontos mais avançados eu ainda estava recuperando o básico, só para poder entender do que estavam falando”.

As dificuldades com o vocabulário, a hostilidade por parte de colegas e alguns professores indicavam um caminho duro pela frente. “Cheguei a escutar que indígena não deveria estar ali, que eu deveria voltar pra aldeia. Encarei isso como um desafio, para provar que somos capazes. Tive a ajuda de muitas pessoas boas que cruzaram meu caminho, que fizeram com que eu conseguisse terminar o curso. No começo, nem mexer no computador eu sabia”, lembra.

O seu percurso, assim como o de outros indígenas que frequentam cursos da UEL, é acompanhados de perto pela CUIA – a Comissão Universidade para os Índios, que através de diversas iniciativas estimula o bom desempenho das atividades acadêmicas desses estudantes. “A CUIA luta para nossa permanência nas universidades e sou muito grata a isso”, afirma.

Hoje, Miriam Viegas se divide entre doze aldeias, de três municípios diferentes, na região de Miracatu, na Vale da Ribeira, interior de São Paulo. Atende cerca de 550 indígenas, liderando uma equipe de enfermeiros, técnicos e uma dentista e conta que ainda lembra dos seu período de internato no Hospital Universitário. “Hoje agradeço os turnos puxados, ter ficado tantas horas sem dormir. Foi isso que me preparou para o meu trabalho com a diferença que hoje, sou eu quem toma as decisões. Me sinto segura ao lembrar de tanta coisa que aprendi. A UEL sempre vai estar presente na minha vida como inspiração também para outros indígenas que estão lá agora ou querem entrar. Mostramos para a comunidade que é possível, que só precisamos de um espaço. Sou grata pela luta do meu povo por isso. Muita gente precisou morrer para conseguirmos isso. Nosso povo se sente representado, conquistando nossos espaços. Essa é importância do indígena na universidade”, sentencia.

Humanas, exatas, biológicas... Uma classificação que mais do que separar, une todas as partes ao redor da instituição de ensino. O cinquentenário da Universidade Estadual de Londrina é uma ocasião de revisitar o passado para tentar entender o presente e, quem sabe, vislumbrar um futuro. Números excepcionais, uma rede complexa de pessoas que se conectam e se desconectam em infinitas ligações mais ou menos profundas, a esfera táctil e o intangível, as lembranças e os exercícios de imaginação para o que pode vir a ser, uma universalidade cheia de particulares.

CASA DE CULTURA

A Casa de Cultura da UEL também comemora o primeiro cinquentenário, é um órgão suplementar vinculada academicamente ao CECA (Centro de Educação, Comunicação e Artes) e subordinada administrativamente à reitoria; desde sua criação contemplam sua estrutura as áreas de música, teatro, cinema e artes plásticas. Maria Helena Ribeiro Bueno é a diretora do órgão e diz que mesmo cinquentenária, a Casa de Cultura não tem casa.

“A cada ano, os recursos financeiros diminuem, assim como o quadro de recursos humanos. Não é possível falar como essa preocupação se traduz em 2021 sem analisar o contexto social, político e econômico de crise pelo qual passamos, presente bem antes da pandemia. É uma história de cinco décadas de trabalho e resistência, que faz diferença na vida das pessoas”, diz. Para a diretora, a ciência, a arte e cultura se confirmaram essenciais durante a pandemia. “Foi um desafio para toda a UEL transpor para o virtual as atividades mantendo o alinhamento dos próprios princípios e finalidades”, conta. Ah, sim: Maria Helena Bueno também se formou na UEL.

A UEL tem um papel imprescindível na democratização do acesso aos bens culturais, de acordo com a diretora. “Grande parte das nossas atividades têm entrada livre ou com preços acessíveis. O acesso também se dá sob a perspectiva da formação, pois em todas as áreas da Casa de Cultura são desenvolvidas atividades que possibilitam a compreensão das linguagens artísticas”, comenta.

Seria muito difícil não relacionar a UEL a grande festivais de artes de Londrina, os mais tradicionais – o FILO, Festival Internacional de Londrina, e o Festival de Música – nasceram dentro da universidade. “É uma responsabilidade enorme para a UEL e para os promotores dos eventos parceiros realizar e continuar realizando os eventos históricos da cidade, proporcionando a fruição destes pela comunidade de Londrina e região. Como promotora, apoiadora ou parceira, a UEL está presente nos mais importantes acontecimentos culturais da cidade”, afirma Maria Helena.

Através da Casa de Cultura e de outras unidades, a UEL também está presente em outros eventos como o Festival de Dança, o Festival de Circo, o Festival UNICANTO de Corais, a Mostra Londrina de Cinema, o Londrix, o Circulasons, o Quizomba entre outros. “Cada um deles colocou a cidade na cena cultural de algum modo”, completa.

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