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Opinião 5m de leitura

ESPAÇO ABERTO - A justiça elitista e a fome das mães

Se você tem a felicidade de fazer três refeições ao dia, não lhe reconheço competência para julgar aquela mãe, suposto que o crime dela foi tentar furtar comida

ATUALIZAÇÃO
10 de outubro de 2021

João dos Santos Gomes Filho
AUTOR

Leio, no blog Brasil 247, que uma mãe foi flagrada tentando furtar dois pacotes de macarrão instantâneo (Miojo Lámen), um refrigerante de 600 ml (Coca-Cola) e um pacote de suco em pó (Tang) de um supermercado em São Paulo. As mercadorias foram precificadas em R$21,00.

Na ocasião do flagrante ela teria assumido a tentativa do furto aos policiais e justificado sua conduta na fome. Levada à juízo em audiência de custódia teve negado o seu pleito de recomposição da liberdade, optando a magistrada (luciana menezes scorza) que presidia o ato por convolar sua prisão decorrente do flagrante em preventiva, nos moldes da pretensão esgrimida pelo ministério público (paulo henrique castex).

 

Antes de tecer maiores considerações sobre a juíza e o promotor enfrento a náusea que a decisão estabelece, suposto que a razão deve prevalecer sempre – até porque não sei o que dói mais: a fome retornando ao convívio ou a ausência de sensibilidade e de conhecimento jurídico do ministério público e da juíza...

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Todavia e num primeiro momento, constato que gente passando fome no maior país agricultável do mundo me diminui enquanto cidadão, suposto que vergonha pouca é bobagem. Assim é que, para a elite do atraso (econômica), empatia não é senão mais um nome a se desconsiderar em caso de gravidez.

Noves fora, mães jamais deveriam passar fome! Senão pela derrota civilizatória da fome em si, pela condição da árvore em relação aos frutos, suposto que o instante em que a provedora se diz faminta perfaz o ponto sem retorno da distopia neoliberal, naquilo que estabelece a morte da galinha dos ovos de ouro da exploração do capital – se a mãe tem fome o filho tem o quê?...

A fome humilha e nega nossa pretensão de um convívio social equilibrado e racional, na medida em que a hipótese de coexistir em sociedade não passa pela tutela da fome. Ademais, é vergonhoso admitir que a fome vem obstando voos mais significativos da humanidade, naquilo que a concepção criacionista remete ao binômio imagem e semelhança com o Criador...

Passa que a ideia da Divindade não convive com o conceito famélico, uma vez que a angústia da barriga vazia nega o ideário humanista que, bem ou mal, nos trouxe até aqui...

A imagem de uma mãe com fome desconstrói o esforço racional que se aguarda do convívio contratado, naquilo que seu resultado perverso obnubila a construção de um modelo mais justo e racional de sociedade...

Assim, o que dizer da cota do ministério público pela conversão da prisão em flagrante em preventiva, notadamente em se tratando de uma tentativa de lesão patrimonial de R$21,00? Sobre a decisão (que me recuso comentar) não se deve relativizar seu caráter financeiro, uma vez que ela demarca o valor da liberdade para a magistrada...

A bem da verdade não conheço a decisão propriamente dita, mas convivo com os reflexos de sua ordenação, naquilo que a bagatela tutelada na segregação preventiva (R$21,00) é um tapa na cara de quem já passou fome. Assim é que, se você tem a felicidade de fazer três refeições ao dia, não lhe reconheço competência para julgar aquela mãe, suposto que o crime dela foi tentar furtar comida.

Que país estúpido estamos. As instâncias do judiciário não se capacitam o suficiente para perceber no outro (minoria jurisdicionada) alguém que não seja uma versão piorada de seus próprios medos e limitações.

A perversão autoritária da opção prisional cautelar, bem traduzida na limitação da lesão tentada naqueles R$21,00, não é senão um reflexo da distopia que as fake news pariram por aqui; em lugar de proteger quem tem fome, a magistrada optou por tutelar o capital...

Orgasmos múltiplos se pronunciaram pela região da Faria Lima ao tempo em que a solidão dos que têm fome atravessou o Rubicão, se deixando levar pela sorte que não lhes valeu.

Vinte e um reais depois, o que seria de se dizer que já não tenhamos todos nós pensado falar?

Posso estar diminuído enquanto cidadão, mas neste instante vou falar pelos que têm fome: não consigo imaginar (olha que sou criativo) solidão maior do que a vivida pela juíza que ordenou a medida, senão pela ausência de energia moral que sua decisão revela, pela contemporaneidade com o Pandora Papers...

O fato do ministro da economia não estar custodiado preventivamente (e entendo não haver motivo para modificar este ‘status’) e aquela mãe que tentou um furto famélico de R$21,00 se encontrar presa, diz mais sobre a solidão da juíza que ordenou a custódia do que sobre ambas as hipóteses descortinadas.

Passou que, por aqui, a banana desandou comer o macaco e a solidão é companheira de quem ainda não compreendeu que as minorias têm que ser tuteladas e não perseguidas – ainda que o cavernícola zurre em sentido oposto.

Saudade Pai, você me ensinou o caminho antes que eu imaginasse qualquer viagem.

Tristes e acovardados trópicos.

João dos Santos Gomes Filho, advogado

A opinião do leitor não reflete, necessariamente, a opinião da FOLHA. 

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