Imagem ilustrativa da imagem DEDO DE PROSA: Pescaria de pari
| Foto: Marco Jacobsen

Meus avós paternos eram filhos de imigrantes italianos e, pelo lado materno, sou neto de um imigrante alemão casado com uma índia brasileira. Tenho orgulho em dizer que minha avó materna pertencia ao povo originário kaingang que habitava no norte do Rio Grande do Sul. Não sei muito sobre como se deu a união entre eles, que se casaram em agosto de 1925, ele com 24 anos e ela com 16.

Enfrentando barreiras e preconceitos, viveram juntos por muitos anos e tiveram oito filhos, dezenas de netos, bisnetos e tataranetos. Contrário à desvalorização dos povos indígenas, sinto-me envaidecido por pertencer a essa etnia, que muito contribuiu para a formação da identidade e cultura brasileiras.

Há pouco tempo estive na casa de alguns parentes e, ao me deparar observando suas fisionomias, não pude deixar de constatar seus traços indígenas. Ficamos horas lembrando nossa infância e das pescarias com nossos pais.

Depois de muitas histórias, contei sobre uma pescaria com o tio Pedro e a tia Duça, quando ficamos durante uma semana na beira de um rio, fazendo a pesca de pari.

Eu tinha doze anos e nunca esqueci aquela experiência. No primeiro dia, meus primos Luiz e Preta adentraram na mata com a sua mãe, Duça, para buscar taquaras e cipós. Eu fiquei com o tio para fazer uma cabana. Com vassouras de guanxuma limpamos o lugar, fizemos um fogão campeiro utilizando pedras e argila e catamos lenha suficiente para vários dias.

Usando troncos e galhos de árvores, cordas e barbantes, montamos uma estrutura em duas águas, que foram cobertas com folhas largas servindo de telhado. Já escurecia quando a tia, Luiz e Preta voltaram trazendo muitos feixes de taquara e cipó. Exaustos, dormimos cedo naquela noite depois de comer feijão com farinha e linguiça.

O segundo dia foi dedicado à construção do pari, que é uma grande esteira feita de taquaras, muito utilizado pelos índios guaranis e kaingangs como método de pesca, que chamavam de “cerco onde cai o peixe”. O trabalho durou o dia inteiro devido à necessidade de entrelaçar as ripas de taquaras, formando uma malha larga amarrada com perfeição.

Na manhã seguinte, levamos o apetrecho para a beira d’água. Tio Pedro já havia levantado uma barragem de pedras no leito do rio para colocar a armação, que foi instalada na parte mais rasa, com declive e corredeiras, permitindo a construção de duas paredes de pedras formando um “V”, para afunilar o curso e acelerar a vazão, direcionando os peixes rumo ao cesto.

A armadilha, com a boca abaixo do nível da água, foi apoiada em pedras e em uma estrutura de madeira semienterrada no leito do rio. Esse ardil, que é a junção da água represada com a armadilha, torna-se perfeito porque os peixes menores passam pela malha de taquaras e seguem rio abaixo enquanto que os maiores ficam retidos.

Em poucas horas, pegamos vários peixes grandes e, satisfeito com o resultado, tio Pedro trancou com pedras e galhos a boca da armadilha e derrubou uma parte da represa deixando espaço livre para os cardumes descerem o rio. No outro dia, a refizemos e voltamos a usar o pari.

Na hora de voltar pra casa, retiramos o cesto da água, derrubamos a barragem, apagamos o fogo e recolhemos os resíduos não perecíveis. Atento às atitudes e oralidade dos tios, que eram descendentes indígenas, fiquei encantado ao observar tanta sabedoria sobre clima, topografia, fluxo das águas, recursos da fauna e flora e, especialmente, sobre a movimentação dos cardumes, ciclos reprodutivos e piracemas de cada espécie.

Levei algum tempo para compreender que aquela pescaria havia sido no final do verão, quando os peixes estavam descendo da cabeceira do rio após a desova e que os troncos, galhos e taquaras, abundantes no lugar, iriam se decompor em poucos meses, enquanto que as pedras e seixos ficariam onde sempre estiveram.

Com tantas lições de ecologia e preservação ambiental, desde pequeno aprendi a respeitar e admirar a cultura e o conhecimento dos povos originários.

Gerson Antonio Melatti é leitor da FOLHA

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