Hoje em dia a criançada está enclausurada em casa por conta do vírus que ronda lá fora. Um bicho minúsculo que intimida pois ninguém o vê. Outro dia um garotinho comentou com a mãe dele, disse ela, pois ele não sai de casa, -mãe não tem problema, é só usar a máscara que o bichinho não reconhece a gente e vai embora! A lógica da criança é sempre diferente da lógica do adulto. Parece que tudo fica mais fácil na visão infantil. Depois a gente vê pessoas idosas que de algum modo já não aguentam ficar mais dentro de casa pois o ser humano não nasceu para viver confinado, e saem alguns sem máscara, achando que o vírus não os afetarão. De um modo ou de outro estamos presos a uma realidade. Não interessa mais como e de onde veio, assim como a gripe espanhola, aconteceu e não se ficou perguntando de onde veio mas sim o que poderia ser feito para curar as pessoas. Vacinas, remédios, atitudes. Andar sem medo nas ruas com os cuidados necessários, uma máscara. Já não se cumprimenta mais com as mãos, mas o respeitoso aceno de cabeça que se usava antigamente. Novas atitudes. Não é tradição mas é um hábito novo, assim é que a cultura acontece , ela se faz aos poucos. Sem grandes revoluções.

Imagem ilustrativa da imagem Dedo de Prosa| As onças do Bratislava
| Foto: Marco Jacobsen

Lembro de minha mãe contar que quando era criança e morava na roça, ia pelos caminhos do Bratislava, patrimônio de Cambé, e as árvores frondosas nas beiradas da estrada muitas vezes escondiam onças. Ir à escola era uma questão de sobrevivência. E voltar também. Não havia avatar. Era ir de corpo e alma para cumprir suas obrigações. E sempre havia uma professora esperando na pequena escola com carteiras de repositório de tinta nanquin e pena, pois não havia esferográfica ainda.

E quantas crianças iam à escola descalças porque não tinham sapatos! Hoje os alunos são invisíveis. O professor do outro lado da tela do celular ou computador muitas vezes não vê o aluno que não abre a tela. E as aulas são um grande desafio a alunos e professores. Realidades diferentes de hoje e antigamente. Antes as onças agora o téte a téte. Antigamente medo das onças hoje fobia de vírus. Não é preciso dizer que toda essa situação gera um cansaço emocional enorme que tem nome moderno chamado de stress. E agora se fala muito em síndrome de Burnout, depressão e ansiedade. Tudo isso ligado a esgotamento mental.

É certo que a humanidade sempre passou por muita pressão. Invasões bárbaras de um povo vizinho eram constantes ameaças para a paz de qualquer povoamento desde que o ser humano começou a formar grupos. Vale lembrar a cidade de çatal huyuk na atual Turquia há quase 7 mil anos atrás onde o seu povo vivia nos telhados, para evitar animais selvagens e ataques inimigos. Era de se esperar que houvesse em nossa carga de genes algum tipo de proteção a essas situações de acordo com a nossa evolução no tempo, mas o que ocorre é que a diferença é justamente a velocidade com que a tecnologia nos afeta.

A grande revolução de nossos dias é a tecnologia que proporciona tantos benefícios e ao mesmo tempo nos cobra atitudes de constante atualização em tudo. As notícias, os relacionamentos, o trabalho, os estudos, os negócios, enfim, tudo o que vivemos parece tão fugaz, foge ao nosso contato. E parece que não temos mais tempo para nada mesmo achando que com a tecnologia teríamos mais tempo para tudo. Hoje, com a pandemia, nós nos afastamos do contato uns dos outros por precaução, por cuidado ao outro e por cuidado a nós mesmo também. O mundo não parou, nem ficou mais devagar, continua girando pelo espaço com sua vertiginosa velocidade. Nós não percebemos mas estamos a caminho de nossa evolução fazendo o que queremos deste mundo e sofrendo suas consequências. Somos senhores de nossa história e de nossa destruição se assim for. E uma coisa é certa: não precisaremos das onças do antigo Bratislava para ser nossos próprios algozes.

Dailton Martins é leitor da FOLHA.

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