Ainda há muito o que avançar na questão da causa animal em todo o País, mas aos poucos o tema vem alçando políticas públicas, visibilidade e espaço nas ruas das cidades. Em Londrina, onde vivem quase 600 mil habitantes, já possível encontrar cães-guias em locais públicos e privados. Por enquanto, são apenas dois animais em circulação e devidamente treinados e habilitados, mas a presença deles já é um passo muito importante.

Os dois animais passaram por um treinamento completo e apresentaram um perfil compatível com dois deficientes visuais de Londrina. Todo o trâmite se deu pelo Instituto Magnus, localizado em Salto de Pirapora, no interior de São Paulo. Desde setembro de 2018, a instituição, que é mantida pelo Grupo Adimax (maior fabricante de alimentos pet no Brasil), tem o propósito de treinar cães-guias e, diferente de todas as outras entidades que atuam no segmento, conseguem atender todas as regiões brasileiras.

Thiago Bornia com o cão-guia Xarife. "Além de cão-guia é meu parceiro. É literalmente minha extensão, meus olhos, minha liberdade e minha autonomia"
Thiago Bornia com o cão-guia Xarife. "Além de cão-guia é meu parceiro. É literalmente minha extensão, meus olhos, minha liberdade e minha autonomia" | Foto: Micaela Orikasa - Grupo Folha

Foi dessa forma que Thiago Bornia, 40, e Alef Campos Garcia, 28, conseguiram a doação de Xarife e Nico. Os labradores nasceram na maternidade do Instituto, passaram por famílias socializadoras voluntárias e após um ano, voltaram para o canil para receberem um treinamento por cinco meses.

“Durante o treinamento, identificamos o perfil do cão e fazemos a compatibilidade com a rotina da pessoa candidata. Isso inclui a altura, peso, velocidade no caminhar, atividades de rotina, entre outros”, explica Thiago Pereira, gerente geral Instituto Magnus, considerado o maior instituto social de cães de assistência da América Latina.

Ao todo, a entidade já treinou e doou 50 cães, sendo 47 cães-guias para pessoas com deficiência visual, dois para pessoas com TEA (Transtorno do Espectro Autista), como animal de apoio emocional, e um para uma pessoa com deficiência física, para auxiliar em algumas atividades diárias. “Tem alguns cães que demonstram aptidão para outro tipo de serviço e por isso conseguimos atender uma ou outra demanda, mas nosso foco é treinar cães-guias”, diz.

Imagem ilustrativa da imagem Cães-guias pelas ruas de Londrina
| Foto: Divulgação - Instituto Magnus

Atualmente, 12 cães estão em treinamento e mais de 50 estão em processo de socialização. Um número bem abaixo da lista de espera do Instituto. Segundo Pereira, são mais de 700 pessoas na fila por um cão-guia. Do Paraná, são 21 pessoas inscritas, sendo quatro de Londrina. "O requisito principal é a pessoa com deficiência visual ter uma vida ativa e independente, com orientação e mobilidade. Isto é, ela tem que se locomover bem com a bengala para se candidatar a ter um cão-guia, além de ser maior de idade por conta da questão legal", explica.

ENCONTRO ESPECIAL

O primeiro a receber um cão-guia em Londrina foi Bornia, que possui baixa visão causada por uma retinose pigmentar (doença degenerativa da visão), descoberta aos 12 anos. “Eu enxergo como tudo como se fosse um espelho embaçado”, exemplifica. Bornia começou a frequentar o Instituto Roberto Miranda em Londrina, que funciona como uma escola para cegos, onde fez o curso de bengala.

“Era tudo muito novo para mim e logo quando o Instituto Magnus foi inaugurado fui um dos primeiros da lista. Em meados de 2019, surgiu o Xarife, com o meu perfil. Junto com os treinadores, ele veio conhecer a cidade, mas ainda não tinha a certeza de que ficaríamos juntos. Então, 15 dias depois fui para a sede do Instituto passar por treinamento e tivemos nosso grande encontro. Hoje, além de cão-guia é meu parceiro. É literalmente minha extensão, meus olhos, minha liberdade e minha autonomia”, lembra.

Já o encontro de Garcia com o labrador Nico demorou quase dois anos e meio. E a notícia de que havia um cão compatível com o perfil dele ocorreu dois dias depois que ele perdeu os pais em decorrência da Covid-19. “Para mim, foi coisa de Deus mesmo. No primeiro dia juntos, ele já deitava comigo e queria estar junto onde quer que eu fosse. Estamos há um ano nessa parceria e minha rotina é outra. Me sinto mais seguro porque sei que ele está enxergando os obstáculos no chão, no plano intermediário e no alto, o que não é possível com a bengala”, comenta.

O Instituto Magnus já treinou e doou 50 cães, a grande maioria para pessoas com deficiência visual
O Instituto Magnus já treinou e doou 50 cães, a grande maioria para pessoas com deficiência visual | Foto: Divulgação - Instituto Magnus

RELAÇÃO DE INTIMIDADE

A relação que os deficientes visuais criam com os cães-guias são de pura intimidade, estabelecendo uma comunicação própria. O processo de adaptação pode levar meses, mas é fundamental para que o cão aprenda os caminhos e os comandos dados por Thiago Bornia e Alef Campos Garcia. “As pessoas pensam que o cão-guia é que leva a gente, mas não. Eles nos ajudam a desviar dos obstáculos”, conta Garcia, que é professor de Informática no Instituto Roberto Miranda. Ele perdeu a visão aos 18 anos.

Diante de um obstáculo, como um degrau ou um buraco, o cão para. “Assim, seguimos com cautela, tateando com o pé ou com as mãos. Assim que eu identifico o risco, afago ele com um agradecimento. É por isso que ter orientações por bengala é fundamental para quem deseja ter um cão-guia”, afirma Bornia. Os comandos também servem para o cão achar uma escada, encontrar um caminho ou desviar de um carro, por exemplo, mas sempre em linha reta.

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DESAFIOS PELO CAMINHO

A Lei 11.126 de 2005 dispõe sobre o direito da pessoa com deficiência visual de ingressar e permanecer em ambientes de uso coletivo acompanhado de cão-guia. Entretanto, ainda há muitas barreiras pelo caminho destas pessoas e animais. Uma delas é a falta de informação e empatia, segundo Bornia e Garcia. “Tem dois lados. Ao mesmo tempo que o cão-guia acaba aproximando o deficiente visual das pessoas, já que a maioria gosta de cachorros, por outro há a questão de não entender a importância e o fato de que eles estão trabalhando”, conta Garcia.

Ambos andam de transporte coletivo urbano e dizem não enfrentar nenhum desafio quanto à entrada do cão-guia nos ônibus. Já em relação aos motoristas de aplicativo, a aceitação ainda é uma dificuldade. “Eu uso o aplicativo da Uber, mas já tive muitos problemas de cancelamento ao comunicar o motorista que tenho um cão-guia, ou mesmo, situações de o motorista negar a corrida ao me ver com o animal. Para mim, não se trata de desinformação, mas de falta de empatia mesmo”, cita Bornia.

'PROMOVER O RESPEITO'

Em nota, a Uber esclarece que “não tolera qualquer forma de discriminação em viagens pelo aplicativo e reafirma o seu compromisso de promover o respeito, igualdade e inclusão para todas as pessoas que utilizam o app (aplicativo). Temos como política que os motoristas parceiros cumpram a legislação que rege o transporte de pessoas com deficiência e acomodem cães-guia.”

A empresa afirma que fornece diversos materiais informativos a motoristas parceiros sobre como tratar cada usuário com cordialidade e respeito e que, recentemente lançou um guia que tem como objetivo apoiar os motoristas parceiros com informações sobre como ter interações positivas e respeitosas com usuários que têm alguma deficiência.

Imagem ilustrativa da imagem Cães-guias pelas ruas de Londrina
| Foto: Folha Arte

“Nos casos em que usuários sentirem que o tratamento dado pelo parceiro não foi respeitoso, ou que desrespeitou os termos da lei, ressaltamos sempre a importância de reportarem esses incidentes à Uber, para que possamos tomar as medidas necessárias. Conforme explicitado no Código de Conduta da Comunidade Uber, casos comprovados de motoristas que adotem conduta discriminatória podem levar à perda de acesso à plataforma”, cita o texto.

Segundo a Uber, os motoristas parceiros devem cumprir todas as leis federais, estaduais e municipais que regem o transporte de passageiros com deficiência. Os animais de serviços devem ser acomodados de acordo com as leis de acessibilidade em vigor. Além disso, os motoristas parceiros devem acomodar passageiros usando andadores, bengalas, cadeiras de rodas dobráveis e outros dispositivos de assistência, tanto quanto seja possível.

DESINFORMAÇÃO

O gerente geral do Instituto Magnus, Thiago Pereira, ressalta que também cumpre seu papel perante a sociedade, de conscientizar sobre os direitos e deveres da pessoa com deficiência e que isso vem sendo empenhado com campanhas e eventos. Outra situação vivida cotidianamente pelos usuários de cão-guia está, segundo Garcia, mais relacionada à desinformação. “As pessoas não sabem que não se deve chamar a atenção do cão, não tocá-lo e nem alimentá-lo. Quando coloco o arreio, ele entende que vai trabalhar e passa a focar no que deve fazer”, explica.

SERVIÇO: Os interessados no trabalho de Instituto Magnus, encontra todas as informações e o formulário para cadastro no site https://institutomagnus.org/

Imagem ilustrativa da imagem Cães-guias pelas ruas de Londrina
| Foto: Divulgação - Instituto Magnus

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