O luto por si só já é um processo doloroso, mas quando se trata de vítimas da Covid-19, os familiares sofrem com as restrições de visitas, perda inesperada e ausência da despedia. No HU (Hospital Universitário) de Londrina, os profissionais da divisão de Serviço Social são responsáveis por fazer o primeiro contato com familiares das vítimas. Quatro delas relatam os desafios de oferecer atendimento humanizado diante da morte em meio a tantos protocolos de segurança.

"Tem casos que a gente liga, fala que é do HU e a pessoa já começa a chorar do outro lado”, conta Rosemeire Ferreira da Silva, 50, técnica administrativa da divisão de assistência social do hospital. A área é responsável por contatar as famílias para conversa com o médico. Nem sempre o assunto é óbito, mas ninguém quer receber a chamada. “A grande maioria questiona, mas nós nunca informamos o óbito por telefone, salvo algumas exceções”, explica Silva.

Imagem ilustrativa da imagem Assistência social do HU de Londrina relata rotina ante morte por Covid
| Foto: Isaac Fontana

Nos últimos meses, o número de mortes por Covid-19 aumentou significativamente em Londrina, portanto, ligar para as famílias se tornou mais frequente. Se o aviso, por si só, não é simples, com os novos protocolos há preocupação maior, como explica a técnica administrativa, Thais Martins Alves, 41. “Eu não posso ligar e dizer para vir qualquer pessoa. Tem que vir o responsável, quem vai reconhecer, porque ninguém mais vai ver”, revela.

‘Ninguém mais vai ver’. Por conta da infecção, a vítima do novo coronavírus é reconhecida no próprio hospital, tem o corpo imediatamente lacrado por um plástico e segue em direção ao sepultamento com o caixão fechado, sem velório. O reconhecimento é feito por um vidro, somente uma pessoa vê quem morreu, só uma pessoa se despede e a distância.

DETALHES

Após um ano de pandemia, o procedimento já é conhecido, mas surpreende nos detalhes. “Eles perguntam: ‘quando eu levo a roupa?’, porque no processo normal, a pessoa seria encaminhada até a Acesf (Administração dos Cemitérios e Serviços Funerários de Londrina) para levar os documentos e uma vestimenta para o sepultamento. E eles perguntam: ‘Agora eu levo a roupa?’”, conta Alves. “Mas não tem roupa”, lamenta.

Porém, diante de tantas recomendações que dificultaram o acesso dos familiares aos internados, a assistência social tenta minimizar a angústia. “A gente tem uma equipe humanizada que, dentro da possibilidade, tenta acolher essa família e atender algumas solicitações feitas com antecedência, como vestir antes de ser fechado com o saco, colocar uma prótese, um acessório, para que esse pequeno conforto seja dado, já que o olhar do familiar foi interrompido”, menciona Juliana Silveira, 47, assistente social que atua no Hospital de Retaguarda.

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Apesar do trabalho, a rotina assusta e consterna. “Nunca foi assim, de ter que ser reconhecido aqui e sair daqui dentro de um saco com zíper, que fecha, que a Acesf vem buscar com o caixão. Ainda é chocante para a gente”, afirma Maria Lúcia Maximiano, 53, chefe da divisão de Serviço Social. “E é um momento em que as pessoas precisam de um abraço e você não pode abraçar”, acrescenta.

FRUSTRAÇÃO
Alves conta que no início havia muita insatisfação com o processo. “Lembro de um caso em que a mulher perdeu o marido e ela falava assim: ‘vocês não me deixaram ver meu marido vivo nem uma vez, ele está aqui faz mais de dez dias e agora vocês me pedem para vê-lo morto’”, emociona-se. “Eles têm raiva, a gente também se culpa, porque não tem o que fazer, a pessoa está sofrendo, com raiva e com razão”.

Entre o misto de frustração e responsabilidade há sofrimento. As assistentes e técnicas revelam histórias de famílias inteiras internadas pela Covid-19, pacientes que querem informação de outro que foi a óbito, jovens que enterraram pais e tios e jovens que perderam a vida pela doença. “O emocional fica abalado, são casos que a gente se põe no lugar. Às vezes morre um menino de 23 anos, a idade do meu filho”, lamenta Silva.

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| Foto: Gustavo Carneiro - Grupo Folha

Porque a dor de quem perde um ente em plena pandemia e por coronavírus, segundo elas, machuca também pela falta de visitas e pelo fato inesperado. Casos de pessoas que se despediram, sem saber, fora do hospital. Gente que foi caminhando para uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento), mas que se agravou, foi transferida para o hospital e morreu repentinamente.

“É impossível não dizer que isso não mexe com o meu emocional, porque mexe, porque eu não consigo dormir, eu sonho com as pessoas que estão aqui”, revela a assistente social. “Eu cheguei no Hospital de Retaguarda em outubro, tínhamos em média 30 pacientes, a gora a gente tem 66”, informa.

Dias envolvidas com a dor do outro e que pesa por não saber quando vai acabar. “Está cada dia pior. Antes eram pacientes moderados, leves, agora internam mais jovens, quadros mais agravados, muitos pacientes intubados, mudou muito a realidade de outubro para cá”, argumenta Silveira. São dias mais intensos, com novos fins dolorosos de um trabalho que não tem fim.


Trabalhadoras relatam cenas do corredor

'São alguns desejos pequenos que as famílias precisam cumprir, senão não descansa'

Acompanhei uma família que veio fazer o reconhecimento. A filha falou que a mãe tinha feito uma prótese dentária recentemente e queria ser enterrada com o item. A prótese estava em casa, nós pedimos para que buscassem com agilidade, para conseguir satisfazer o desejo a tempo. Falei com a enfermeira, pedi para colocar antes de fechar o saco. ‘Não vamos causar conflito na família por causa de uma prótese dentária’. A gente colocou. São alguns desejos pequenos que as famílias precisam cumprir, senão não descansa.

Maria Lucia Maximiano, 53, chefe de divisão de Serviço Social

'Eu sei que meu pai vai morrer e ele tem um terno em casa que guardou para esse dia'

Tinha um paciente grave no Hospital de Retaguarda, a família falou para mim: ‘eu preciso te pedir uma coisa’. Eles já tinham vindo diversas vezes conversar com a equipe médica. O filho falou: ‘Eu sei que meu pai vai morrer e ele tem um terno em casa que guardou a vida inteira para esse dia. Eu posso trazer?’. Era um paciente de Covid-19, que sairia daqui sem as vestes. Eu conversei com a equipe de enfermagem, expliquei a situação, porque é um desejo do pai e os filhos se sentiram na obrigação de cumprir esse desejo. A enfermagem autorizou, eles trouxeram e ele foi vestido com o terno. A hora que a família foi reconhecer o corpo, viu que ele estava vestido conforme ele queria. É o que a gente pode fazer, porque foram tantos rompimentos.

Juliana Silveira, 47, assistente social no Hospital de Retaguarda

'A família inteira morreu e ele era um menino de 19 anos'

Eu atendi um rapaz com o mesmo nome do meu filho. Ele tinha 19 anos e o chamei na quinta-feira para reconhecer a avó. Na sexta-feira, ele levou o avô de alta. Na segunda-feira, veio reconhecer a mãe e depois veio reconhecer mais um da família. A família inteira morreu e ele era um menino de 19 anos. Teve que enterrar todo mundo sozinho. Quando ele me via, já tinha a expressão no rosto. E aí não tem o que falar, é um menino. Enterrou quatro pessoas da família. Você vai pra casa e fala: ‘gente, podia ter sido meu filho.

Thais Martins Alves, 41, técnica administrativa da divisão de Serviço Social

'Ela veio internada por outro problema, adquiriu Covid-19 e morreu'

Neste um ano de pandemia, a gente atendeu uma moça que já conhecia, que nasceu aqui no hospital, mas tinha uma saúde frágil. A gente a conhecia há muito tempo, porque já acompanhava a família. Ela ficou internada por dois anos aqui, então, a gente convive, conhecia a família. Ela veio internada por outro problema, adquiriu Covid-19 e morreu. A gente sofreu muito, de chorar mesmo, porque a gente tinha criado laços.

Rosemeire Ferreira da Silva, 50, técnica administrativa da divisão de Serviço Social



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