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Avenida Paraná 5m de leitura

Caminhando com meu pai

ATUALIZAÇÃO
05 de fevereiro de 2018

por Paulo Briguet
AUTOR



Hoje, 21 de dezembro, faz nove anos que meu pai morreu. Paulo partiu numa tarde de domingo, quatro dias antes do Natal que mais uma vez queríamos passar juntos. É natural que a saudade fique mais intensa a partir dos idos de dezembro, e se torne quase uma presença palpável durante as festas familiares.

Na véspera da morte de Paulo, Rosângela comprou-me um livro de presente: "No Tribunal de Meu Pai", do escritor judeu-polonês Isaac Bashevis Singer (1904-1991). Certa vez, Singer declarou: "Quando morre uma pessoa que é próxima de você, ela se distancia; com o passar do tempo, ela se torna mais próxima. Depois de muitos anos, chega um momento em que você está quase vivendo com ela. Foi o que aconteceu comigo. A Polônia está mais próxima de mim agora do que estava na época da minha juventude".

É exatamente assim que eu me sinto em relação aos meus amados pais, Paulo e Aracy. Vejo, com espanto, que falta apenas um ano para uma década sem meu pai. De manhã, quando o telefone toca, por um instante ainda penso que será ele a pessoa do outro lado da linha.

Meu pai era a pessoa mais educada que já conheci. Perto dele, sou um bárbaro. Sua principal qualidade como homem educado, a meu ver, era o dom de enxergar a unidade essencial das três irmãs da alta cultura, que sempre caminham lado a lado: a verdade, a bondade e a beleza. Por isso, Paulo não era um "homem do nosso tempo". Ele jamais aceitaria que o belo fosse mau e arrogante; que o bem fosse hipócrita e tirânico; que a verdade fosse estúpida e deprimente. Mas é tudo isso que infelizmente vemos sendo defendido por aí. Essa divisão entre a verdade, a bondade e a beleza é o abismo da nossa civilização. Precisamos resgatar a unidade perdida, sem confundi-la com uniformidade.

O amor pela cultura tenha sido a herança mais importante que meu pai me deixou. Só através da contemplação das coisas belas podemos sair da redoma em que a serpente quis nos confinar com a mais velha das mentiras: "Sereis como deuses".

Quando prestou vestibular para a Faculdade do Largo São Francisco, em São Paulo, a prova de inglês era uma análise sobre o romance "On Human Bondage" (Servidão Humana), de W. Somerset Maugham. Creio que, a exemplo do protagonista do livro, o médico Philip, estamos hoje vivendo uma servidão, mas agora em escala global, enfrentando forças descomunais cujo principal alvo é a inocência humana. Em troca de um "mundo igualitário", repleto de "diversidade" e "prazer", os príncipes deste mundo querem nossa total subserviência. E o tal do mundo perfeito não vem nunca!

A saudade de meu pai se transformou numa presença amorosa: inspirado por ela, e na impossibilidade de erguer catedrais, tento construir a pequena e imperfeita obra de cada dia. É como se eu caminhasse ao seu lado nas ruas de São Paulo, ajudando a carregar seus livros. Paulo anda pela Avenida São João, silencioso como São José, mas o seu olhar através do tempo me diz muitas coisas...

Obrigado, pai.

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