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Avenida Paraná 5m de leitura 🔒

.A viagem

Na hora sem hora em que teu desalento for tão grande quanto a morte

ATUALIZAÇÃO
12 de janeiro de 2023


AUTOR

Esta rua, meu amigo, já teve outro nome. Antes do asfalto, ela foi uma estrada de terra – pó e lama, conforme o tempo. Antes de ser uma estrada, ela foi uma trilha no meio da mata subtropical, aberta a facão pelos caboclos que sumiram ou morreram de malária, febre amarela, esquistossomose. Caminhas sobre essas antigas trilhas, hoje soterradas, mas não menos verdadeiras.

 

Se voltares um pouco mais no tempo, verás que a picada foi aberta pelos caboclos sobre um velho caminho de capivaras. E as capivaras – esses grandes roedores, parentes dos esquilos – bebiam água no ribeirão que foi represado para criar o grande lago artificial. O pequeno curso d’água desemboca no Rio Tibagi, onde peixes de diversas cores e tamanhos encontram mais peixes. E estes, se retrocedermos um pouco mais, no tempo e no espaço, vieram do oceano que os antigos navegadores chamavam de Mar Tenebroso.

Sente o gosto do sal e a voz das ondas; recebe o cheiro do mar, do tempo em que esta cidade em que vives agora, hoje tão distante do oceano, era o próprio oceano. E mergulha, mergulha sem medo nas águas e nas rochas que assassinaram multidões de incautos, aqueles que não tiveram medo do mar. Porque agora tens guelras e podes respirar distante dos predadores. Viaja até o momento em que nenhuma ave do céu possa ser vista; até o lugar em que a esperança das praias já não mais existe.

Então perceberás que não há mais volta; e que a sua morada é um deserto ao avesso, habitado por monstros não catalogados pelo homem das academias universitárias. Sentirás a majestosa solidão da noite no oceano e ouvirás vozes incompreensíveis até pelos cegos poliglotas da Biblioteca de Babel. Ali nas trevas que nem a baleia, nem o tubarão ousam explorar.

Olharás para baixo – e não verás o chão do mar. A alcateia do vento uiva em sol menor, mas tu não escutarás esse concerto. Tua atenção se voltará completamente para as cordilheiras internas, os Everests e Aconcáguas submersos na escuridão, entre as criaturas disformes que o Criador guardou no fundo do mar para que sua feiura não incomodasse o sonho das crianças e das mulheres grávidas.

E nada disso terá nome, nem idioma, nem consciência da morte. Tudo desaparece sem deixar um só rastro na memória cambriana. Bactérias e demais microrganismos formam colônias indecisas entre o reino vegetal e mineral; são terras sem fé, nem lei, nem rei.

Na hora sem hora em que teu desalento for tão grande quanto a morte, ou até pior do que ela, surgirá sem explicação a rua em que te encontras agora, ao ler estas palavras. E nesta rua, a tua casa. E nesta casa, teus entes amados, inclusive os que partiram, cercados por anjos e santos de todos os tempos. Sons de música e oração. Risos e vento nas folhas — e uma cruz, uma pomba, uma luz. Terás chegado ao Lugar, meu amigo. Enfim, és livre.

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