Vila Feliz, área de invasão na zona sul de Londrina, onde vivem 64 famílias
Vila Feliz, área de invasão na zona sul de Londrina, onde vivem 64 famílias | Foto: Gustavo Carneiro - Grupo Folha

A rua Alexandre Frossard, uma via sem asfalto e coberta de pedras, é a porta de entrada da Vila Feliz, área de invasão onde vivem 64 famílias, localizada nos fundos do jardim Itapoá (zona sul de Londrina). No bairro, Taiane Martins de Oliveira tornou-se referência para os moradores. É a ela que recorrem quando em suas casas começam a faltar alimentos para o sustento da família. Integrante do MAP (Movimento Autônomo Popular), a líder comunitária atua como um serviço informal de assistência social. Tem registrados os nomes de cada habitante, adulto ou criança, e quando chegam as doações, prepara senhas para organizar a distribuição de cestas básicas.

Oliveira reside há seis anos na vila Feliz. A vida na comunidade, conta ela, nunca foi fácil. O bairro não tem saneamento, os moradores vivem em situação de extrema vulnerabilidade, com altos índices de desemprego, e a fome e a violência estão sempre à espreita. Mas há pouco mais de um ano, desde que começou a pandemia do novo coronavírus, a cada dia a pobreza cede espaço para a miséria e mais pessoas vão bater à porta da líder comunitária em busca de ajuda.

Taiane Martins de Oliveira: "Divido um pacote de arroz em três partes para que mais famílias recebam alimentos"
Taiane Martins de Oliveira: "Divido um pacote de arroz em três partes para que mais famílias recebam alimentos" | Foto: Gustavo Carneiro - Grupo Folha

No bairro, não há relatos sobre contaminações pela Covid-19, mas ainda assim os moradores são duramente afetados pela doença. Os reflexos da pandemia são sentidos por eles por meio do agravamento da desordem econômica e social que resulta em fome e outras carências básicas.

Entre a comunidade, as necessidades crescem na mesma proporção em que o novo coronavírus se dissemina no município. Quem tinha emprego, hoje mal consegue um “bico”, e quem já vivia na informalidade, agora conta apenas com benefícios sociais, de valor insuficiente para atender as demandas da família.

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'AINDA ESTAVA NO JAPÃO'

A dona de casa Alexandra de Souza Serafim retrata bem essa realidade. No início do ano passado, relatou, “a pandemia ainda estava no Japão”, mas o dono do depósito de material de construção onde trabalhava como auxiliar de serviços gerais foi logo demitindo parte dos funcionários. Pouco tempo depois, ela conseguiu uma nova colocação em um frigorífico, mas o novo emprego não durou muito. Em pouco tempo, acabou dispensada “por causa da crise”. “Tenho currículos espalhados pela cidade toda, mas ninguém me chama.”

Alexandra de Souza Serafim foi dispensada por causa da crise: “Já pensei em ir para debaixo da ponte porque é muito difícil pagar aluguel"
Alexandra de Souza Serafim foi dispensada por causa da crise: “Já pensei em ir para debaixo da ponte porque é muito difícil pagar aluguel" | Foto: Gustavo Carneiro - Grupo Folha

No ano passado, Serafim conseguiu o auxílio emergencial por alguns meses, mas com o fim do pagamento do benefício pelo governo federal, atualmente a família sobrevive apenas com a renda do Bolsa Família que vai quase toda no pagamento do aluguel, no valor de R$ 300. O pouco que sobra é utilizado para comprar remédios. O marido tem uma doença que o incapacita para o trabalho e um de seus quatro filhos é especial. Há muito tempo, a dona de casa não entra em um supermercado para escolher os produtos que quer levar para casa. Ela, o marido e os filhos comem o que recebem por caridade.

DIVIDO EM TRÊS

Oliveira, que organiza a distribuição dos donativos no bairro, encontrou estratégias para fazer os alimentos renderem e, assim, chegarem ao maior número de pessoas possível. “Às vezes, eu faço uma cesta básica virar duas ou até três. Divido um pacote de arroz em três partes para que mais famílias recebam alimentos. Reparto até o pacote de café, um pouquinho para cada um.” Mas as doações ainda são pontuais e os mantimentos não chegam com regularidade a quem necessita.

As escolas fechadas e a suspensão das atividades nas oficinas, lembrou a líder comunitária, contribuíram para aumentar a fome da população. As escolas ofereciam a merenda e nos projetos de contraturno escolar, as crianças recebiam ao menos um lanche. “Meus filhos tomavam o café da manhã na oficina e almoçavam na escola. Uma cesta básica não dá para alimentar todo mundo, com as crianças o dia todo em casa”, disse Serafim.

BENEFÍCIOS SOCIAIS

A realidade de Serafim é a mesma vivida por todos os outros moradores do bairro. A diarista Suzamar Franco Oliveira também teve os serviços dispensados no início da pandemia e, desde então, o sustento do lar é garantido pela renda do marido e por benefícios sociais. Para manter os três filhos, a solução foi cortar despesas “não muito essenciais”. O corte pôs em risco a segurança alimentar da família, que deixou de ingerir carnes, leite e derivados. “A gente tinha expectativa de que a situação fosse melhorar no fim do ano passado, mas começou outro ano e isso não aconteceu. Não sei como vai ser daqui para frente.”

 Suzamar Franco Oliveira:  "Não sei como vai ser daqui para frente.”
Suzamar Franco Oliveira: "Não sei como vai ser daqui para frente.” | Foto: Gustavo Carneiro - Grupo Folha

Serafim teme pelo futuro. Ela sonha em construir sua própria moradia em um terreno ao lado da casa onde reside, mas nunca sobra dinheiro para a compra do material de construção. Para fugir do aluguel, já chegou a cogitar morar na rua. “Já pensei em ir para debaixo da ponte porque é muito difícil pagar aluguel. Esse mês eu não consegui pagar. A maior dor, para mim, é quando o filho pede pão de manhã. Eu misturo um trigo com água e sal, frito no óleo e é isso o que ele come. Quando tem. Já cheguei a dar água com açúcar para eles beberem por não ter leite em casa.”

Em tratamento constante contra a depressão, Serafim conta que é dos filhos que vem a força para não esmorecer. “Quando ataca a crise, começo a chorar. Choro no meu canto. A gente é o espelho da vida dos filhos. Se a gente mostrar fraqueza, eles não vão aprender a ter coragem e eles têm que ser fortes. É daí que tiro a minha força para continuar lutando.”

SERVIÇO - Quem quiser encaminhar doações aos moradores da Vila Feliz pode entrar em contato com Taiane, pelo telefone (43) 98498-6697. Além de alimentos, a comunidade necessita de itens de higiene e limpeza, roupas, calçados, cobertores e material de construção.

MÁ GESTÃO DA CRISE

O agravamento da questão econômica e social em meio à pandemia é consequência do descaso do governo federal em relação à crise sanitária, avalia o economista e supervisor técnico do Dieese no Paraná, Sandro Silva. A resistência em implementar medidas de isolamento social, cedendo à pressão de empresários e de grupos econômicos, e a demora em liberar o auxílio emergencial acirraram as dificuldades de sobrevivência da população, atingindo mais fortemente os cidadãos mais vulneráveis. “O dilema que foi colocado lá atrás pelo presidente, a questão da saúde e da economia, não existe. Uma coisa está relacionada à outra. Não resolveu a pandemia e a economia sofre. O governo não leva a sério nem a economia e nem a saúde.”

O Brasil já não vinha bem nos indicadores de emprego. Antes mesmo da pandemia, lembrou o economista, o índice de desemprego no país estava em 7,9%, mais que o dobro do registrado em 2013 e em 2014. Em fevereiro de 2020, o desemprego batia em 11%, em setembro chegou a 14%, teve uma leve redução no final do ano, caindo para 13,9%, mas voltou a crescer em janeiro, com 14,2% de recuo. Entre o primeiro e o terceiro trimestre do ano passado, dez milhões de vagas formais de trabalho foram perdidas no país.

Imagem ilustrativa da imagem Pandemia revela a face da miséria em Londrina
| Foto: Gustavo Carneiro - Grupo Folha

“Ao longo do ano passado melhoraram os níveis de emprego e renda, mas os informais não retornaram à normalidade. No final do ano, ainda não tinham recuperado integralmente a renda de antes da pandemia e a expectativa é que, neste ano, com o agravamento da crise sanitária, a recuperação tenha se interrompido”, disse o pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) Sandro Sacchet.

QUEDA NA MASSA SALARIAL

À perda significativa dos níveis de ocupação juntou-se a queda na massa salarial dos ocupados. Quando comparados o primeiro e o terceiro trimestres de 2020, a renda do brasileiro encolheu R$ 42,6 bilhões, redução de 18%. No Paraná, no mesmo período, a perda foi de R$ 3 bilhões, retração de 19,60%. O Dieese traduz em números as condições de vida dos moradores da vila Feliz, do Morro do Macaco, em Londrina, e de tantas outras comunidades do país que vivem situação semelhante.

“Com o agravamento da crise e a necessidade de tomar medidas de isolamento e restrição na economia e sem o auxílio emergencial, a gente já tinha uma expectativa de que o mercado de trabalho viveria o pior momento da pandemia no primeiro trimestre deste ano, mas possivelmente ainda virá o acirramento da situação.”, prevê Silva. O cenário, afirma ele, deve superar as piores expectativas.

VACINA É ÚNICA SAÍDA

O novo auxílio emergencial, observou o economista, coloca limitadores para a sua concessão que acabam complicando a economia. Um exemplo é a restrição de acesso. Quem não teve acesso ao auxílio emergencial no ano passado, não vai conseguir receber neste ano. O valor que o governo vai gastar no novo auxílio, de pouco mais de R$ 40 bilhões, não chega a ser 15% do que foi pago no ano passado. “A cada dia ficam piores as perspectivas. Não tem política que ajude as famílias a ficarem em casa e comer e sobreviver e não tem ações que controlem a pandemia. A gente vive uma invisibilidade do trabalhador. A nossa única saída é a vacina. Tem que acelerar a vacinação.”

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