O biólogo Luis Felipe Manvailer foi condenado a 31 anos, 9 meses e 18 dias de prisão pelo homicídio qualificado da esposa, Tatiane Spitzner, em júri popular que chegou ao fim nesta segunda-feira (10), após sete dias de julgamento, em Guarapuava (Centro). Foi enquadrados nas seguintes qualificadoras: feminicídio, meio cruel e motivo fútil. Ele também foi condenado por fraude processual. Cabe recurso à decisão.

Imagem ilustrativa da imagem Caso Tatiane Spitzner: Mainvailer é condenado a 31 anos por matar a esposa

O caso aconteceu em julho de 2018. O corpo de Tatiane foi encontrado na frente do prédio onde ela morava com Manvailer. Na decisão foi mantida a prisão preventiva e Manvailer não terá o direito de recorrer em liberdade. Ele está preso na Penitenciária Industrial de Guarapuava (PIG) há dois anos e nove meses.

O episódio reacendeu o debate sobre a questão do feminismo e do feminicídio no país. São comuns os registros de mulheres que são mortas por parceiros ou por ex-companheiros. Há também aquelas que são vítimas dos próprios familiares, por conhecidos ou mesmo por pessoas com as quais nunca tiveram contato.

Segundo o relatório “Práticas de enfrentamento à violência contra as mulheres (2019)” realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em coparceria com o Instituto Avon, apenas em 2017 foram registrados mais de 221 mil boletins de ocorrência de violência doméstica relacionados a lesão corporal dolosa, 60 mil estupros, 4.539 homicídios femininos e 1.133 vítimas de feminicídio.

O Atlas da Violência 2020, produzido pelo mesmo Fórum, aponta que o Paraná possui uma taxa de homicídio para cada 100 mil habitantes de 3,7, enquanto esse índice no país é de 4,3. Essa taxa foi elaborada com dados da Gerência de Estudos e Análises da Dinâmica Demográfica/IBGE e SIM/MS. Para comparar, o Mapa da Violência 2015 (Cebela/Flacso), que é uma referência sobre o tema, contabiliza que, entre 1980 e 2013, 106.093 brasileiras foram vítimas de assassinato.

QUEM AMA NÃO MATA

A jornalista Mirian Chrystus Mello e Silva é professora adjunta da Universidade Federal de Minas Gerais e conhecida por sua militância feminista. Nascida em Curitiba e radicada na capital mineira, ela participou de uma grande manifestação, nas escadarias da Igreja São José de Belo Horizonte, em 1980, contra a violência específica sofrida pelas mulheres, que ficou conhecido como o Ato da Igreja São José. No espaço temporal de 15 dias foram registradas as mortes de Heloísa Ballesteros e Maria Regina Souza Rocha.

Dessa ação surgiu o movimento QANM (Quem ama não mata). Em 2018, no dia 9 de novembro, o grupo reeditou o Ato da Igreja São José, agora com novas vozes da sociedade: representações das profissionais de sexo, das trabalhadoras rurais, das negras, LGBTQIA+, das trans etc.

“Interessante e oportuno lembrar que a reedição do movimento se deveu em grande parte ao assassinato brutal de Tatiane Spitzner. Vimos aquelas imagens dela sendo agredida no carro, no estacionamento e, principalmente, no elevador. As imagens dela caminhando para a morte que ocorreria na sequência em poucos minutos provocaram uma indignação muito grande em muitas de nós. E, a partir de conversas no Facebook, resolvemos fazer algo forte, contundente: reeditar o 'Quem ama não mata'”, aponta Chystus.

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"A história de Tatiana Spitzner é a mesma de muitas mulheres espancadas, abusadas e finalmente assassinadas por seus companheiros. Homens que elas amaram um dia e parecem ter dificuldades de neles perceber a presença do futuro assassino", destaca Chrystus.

Ela reforça que o pai de Tatiane, quando de sua morte, em 2018, disse que ela estava numa "relação abusiva". "Por que uma mulher, profissional e independente economicamente, não consegue se afastar do seu abusador? O conceito de 'ciclo da violência' parece explicar. A cada violência cometida, o homem pede perdão, muda de comportamento, torna-se carinhoso e promete mudar, não agredir mais."

Segundo Chrystus, essas mulheres presas no "ciclo de violência " têm necessidade de acreditar no companheiro que já foi, um dia, o amor de suas vidas. "É quase impossível para elas pensar que o amor acabou, reconhecer que estão correndo risco de morte", aponta.

"Nas últimas imagens de Tatiane Spitzner, o que mais choca é vê-la tentando voltar para casa. A casa que não é mais um lar, a casa que já é o seu abatedouro, mas ela não parece dar conta. Como se a casa fosse protegê-la, como se as paredes fossem protegê-la. E assim, apanhando, sendo já um pouco morta dentro do elevador, ela caminhou para o seu fim."

ORIGEM DO QANM

Ela ressalta que as origens do movimento estão no Seminário Mulher em debate, no DCE (Diretório Central dos Estudantes), em 1975. “A originalidade ali estava em levantar que havia a questão da mulher, para além da luta contra a ditadura militar. A esquerda achava que discutir outras pautas era ‘desvio de forças’. Promovemos três dias de debate e trouxemos, entre outras, Therezinha Zerbini, do Movimento Feminino pela Anistia, Branca Moreira Alves e Raquel Moreno.”

“Em 1975 éramos cinco jovens estudantes universitárias. Líamos, entre outras coisas, [Friedrich] Engels (Origens da família e da propriedade privada); Heloneida Studart (Mulher objeto de cama e mesa); e Elena Bellotti (O descondicionamento da mulher). Dávamos entrevistas, escrevíamos artigos e reportagens numa perspectiva crítica. Por exemplo, a matéria sobre o assassinato de Ângela Diniz, feita por Beth Cataldo para o jornal de imprensa alternativa, do qual participávamos”, relembra.

Ela se recorda também que em 1980, após o Ato da Igreja São José, foi criado o Centro de Defesa dos Direitos da Mulher, o CDDM. “Ali foram feitas as primeiras pesquisas em Minas sobre a questão da violência contra as mulheres. Celina Albano, a primeira presidenta do CDDM, atuou na Constituinte de 1986 ao lado de tantas outras e algumas vitórias expressivas foram alcançadas na Constituição de 1988, entre elas a igualdade jurídica entre homens e mulheres e a responsabilização do Estado pela segurança das mulheres. Isso pavimentou o caminho para a Lei Maria da Penha, em 2006.” A atuação do grupo chegou a inspirar uma minissérie homônima na Globo, veiculada em 1982.