A primeira onda feminista no Brasil ocorreu com o movimento sufragista, que pedia o direito ao voto para as mulheres e isso ocorreu em 1932. A segunda ocorreu em um encontro realizado em 1975, na sede da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), no Rio de Janeiro, que obteve patrocínio da ONU (Organização das Nações Unidas).

Uma das participantes foi Branca Moreira Alves, que relata que o evento só foi realizado porque tinha o respaldo da ONU. “Estávamos em plena ditadura , na parte mais tenebrosa do governo [Emílio Garrastazu] Médici. Qualquer reunião chamava a atenção. A ONU deu o suporte para a realização do evento e para que esse evento fosse o marco zero dessa segunda onda do feminismo no Brasil.”

Alves revela que das pautas da época ainda tem muita coisa que não foi contemplada. “Sobre os direitos reprodutivos, por exemplo, a luta é terrível. A gente não consegue a descriminalização do aborto de jeito nenhum e se bobear corre o risco de retroceder à legislação criminal de antes de 1940, porque há uma luta de evangélicos e religiosos para voltar àquela legislação. O controle da mulher sobre o seu corpo é ponto fundamental de toda essa questão do patriarcado. A gente não é a favor do aborto, mas defende política pública para não ter gravidez indesejada e ninguém propõe uma alternativa para que isso aconteça. Quem é contra o aborto não dá uma solução. Não somos abortistas. Ninguém faz aborto achando que vai para a praia. Tem que ter política pública decente”, destaca.

Alves é uma das autoras do livreto da coleção Primeiros Passos “O que é feminismo?”, ao lado de Jaqueline Pitanguy, publicado pela editora Civilização Brasileira em 1981. “A gente não tinha muito a noção de que a barreira do patriarcado fosse tão poderosa. O que nos decepciona, e eu me refiro a todas as veteranas feministas da década de 1970, e que ainda estão todas na luta, é que por mais que tenha havido avanço, a violência não cessa. Isso ainda nos surpreende e nos entristece”, destaca. "A Jaqueline tem um depoimento sobre a Conferência Internacional de Direitos Humanos em Viena, em 1994, e foi uma luta do movimento feminista internacional para incluir na carta de plataforma de ação que as mulheres tinham direitos humanos. Foi uma luta com países muçulmanos e com a igreja, porque o homem tem uma série de direitos que a mulher não tem."

Alves afirma que desde o evento na ABI em 1975 até hoje as pautas são as mesmas e não se avançou muito. “Pelo menos no Brasil. Para o ciclo de violência acabar eu acho que tem que ter educação que ensine a ter respeito na escola e dentro de casa. São coisas óbvias. E parar com as piadinhas machistas, que é uma forma de preconceito. É um absurdo. Não se pode aceitar de forma alguma essas piadas, assim como as piadas racistas ou homofóbicas. É um preconceito puro e simples.”

LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA

Em março deste ano houve a decisão do STF que proíbe uso da tese de legítima defesa da honra em crimes de feminicídio. Trata-se de uma figura jurídica utilizada pela defesa de um réu para justificar determinados crimes de natureza passional, atribuindo o fator motivador do delito ao comportamento da vítima. “Não imaginava que ia levar 40 anos para derrubar apenas a questão da legítima defesa da honra. É cada história horrorosa que a gente luta contra isto há 40 anos”, destaca.

“Em 1976 teve o caso da morte de Ângela Diniz em Cabo Frio. Eu me lembro de detalhes do primeiro julgamento, em que ela foi a julgada e não o assassino confesso dela. Foi realmente como se fosse um tapa na cara. Foi quando caiu a ficha de como é o patriarcado.” Ela relembra que o advogado de Doca Street, que tinha sido do STF, um democrata que lutou contra a ditadura, calcou sua defesa sobre o comportamento dela ter provocado o assassino. “No fundo se resume que uma mulher livre não pode ter direito a uma vida.” No segundo julgamento fomos em peso para Cabo Frio. Parece que esse argumento continua a ser utilizado em cidades do interior do Brasil.”

Um exemplo disso no Paraná ocorreu no dia 5 de agosto de 1988, quando João Lopes perseguiu sua mulher, Terezinha Ribeiro Lopes, por dois dias antes de encontrá-la hospedada em um hotel em Apucarana com o amante, José Gaspar Félix. A pedido do porteiro, Félix abriu a porta, sendo imediatamente apunhalado repetidamente no peito por Lopes. Perseguida, a mulher fugiu, nua, sendo alcançada na entrada de um hospital situado a cerca de 30 metros do hotel, onde foi morta com duas facadas, a primeira nas costas. O Superior Tribunal de Justiça, de 1991, que rejeitou a legítima defesa da honra e determinou novo julgamento pelo Tribunal do Júri de Apucarana do réu que matou a mulher e o amante dela. Em novo julgamento, o réu de Apucarana foi absolvido.

ATUALIZAÇÃO DO LIVRETO?

Questionada se haveria alterações no livreto "O que é feminismo?" se fosse escrito hoje, Alves revela que a dupla pensou em atualizar a obra. "A gente pensou em atualizar, mas não dava porque o feminismo de hoje são vários feminismos e tem muita coisa acontecendo. Estamos escrevendo a história daquele tempo, sobre a década de 1970 e 1980, e vai ser atualizado com a luta das feministas na Constituição de 1988, com a criação do Conselho Nacional de Direitos da Mulher, que foi uma promessa do Tancredo Neves e o José Sarney acabou cumprindo e criou esse conselho feminista. Nós tínhamos no Congresso o chamado 'Lobby do batom". O livro termina aí."

Ela relata que o livro já está pronto e deve ser lançado em breve, mas ainda estão sendo finalizados os últimos detalhes. Alves explica que os novos capítulos dessa história estão sendo protagonizados por mulheres jovens e engajadas que estão trazendo toda uma nova dimensão ao movimento.

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